perpetuarem suas verdades e conhecimentos, expressando e justificando crenças, e
conceitos morais, filosóficos e/ou religiosos.
O mito, dentro dessa visão que evoca Pessoa, assenta também outros significados,
tal como o de modelo dialético do tempo, que retoma o antigo, interferindo e projetando
sua forma. A forma artística, embalada pelo condão encantatório do mito, retoma por
diversas vezes seu modelo para impulsioná-lo em suas novas manifestações.
Dentro dessa perspectiva de materialização de impulso em forma narrativa que o
mito de
Anfitrião
aparece na peça de nome homônimo do escritor latino Plauto. Quando
Plauto retoma o mito para com ele interagir, sua posição não será a de mero copista,
mas a de um escritor que adapta o já conhecido e o mescla a elementos que a estrutura
da tragicomédia exige. À época plautina, já existia um grande documento que analisa a
questão das peças teatrais –
A Poética,
de Aristóteles – que será a base da construção de
sua peça.
Olhar o antigo sob nova óptica, procedendo a uma repetição com distância
crítica, ou, nas palavras de Hutcheon, “uma distanciação crítica entre o texto em fundo a
ser parodiado e a nova obra que incorpora” (1985, p. 17) exige um trabalho de
perscrutação atenta, para não cairmos nas malhas do “tudo é possível” e do “tudo é
viável”. Na constituição da obra, a tessitura do discurso do autor se dá também pelo
diálogo com outra obra, ou seja, o novo texto
surge como um diálogo de textos: toda sequência se constrói em relação a
uma outra, provinda de um outro
corpus
, de modo que toda sequência está
duplamente orientada: para o ato de reminiscência (evocação de uma outra
escrita) e para o ato de intimação (a transformação dessa escrita) (Kristeva,
1974, p. 98-9).
Da perspectiva comparativista, se o cotejo aqui pretendido é entre a peça
plautina e sua releitura, podemos pensar primeiramente, no suporte textual que a peça
carrega e notarmos que, já no processo de recriação dramatúrgica do escritor latino, há
diversas semelhanças e divergências em relação ao mito original, ou, nas palavras do
próprio escritor, aquilo que irá ser apresentado é “uma velha história antiga renovada”
(Plaute, 1970, p. 15)
2
.
Se o texto plautino transpõe o mito anfitriônico para o teatro para renová-lo, não
será diferente com o texto saramaguiano de
O Homem Duplicado
, que retoma o tema da
2
No original: Veterem atque antiquam rem nouam ad uos proferam. Tradução livre, sob nossa
responsabilidade.