Já antes havíamos observado que o texto saramaguiano olha o velho sob nova
óptica. Entretanto, parodiando os pequenos detalhes do
Amphytruo
e formando novos
contextos,
O Homem Duplicado
reivindica para si uma identidade própria.
Sob a égide de uma
aemulatio
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que se quer crítica, o texto de Saramago começa
a revelar sua relação intertextual. Pensemos como ocorre essa emulação do mito
anfitriônico para o texto narrativo de Saramago por meio de deslocamentos de seu
protótipo.
Para Bouché (1974, p. 52-53), o deslocamento consiste em uma espécie de
transferência de qualquer tipo, ou, como diz Lausberg, em “uma mudança de lugar de,
pelo menos, um elemento” (1972, p. 102). Segundo a visão dos autores citados, pode
haver um deslocamento de qualidade de uma personagem a outra, a transferência de
autoria, de um período, época, tempo, local, provocando, certas vezes, uma
inadequação.
Dessa forma, quando pensamos nas personagens do romance, estas são
reeditadas de forma paródica e deslocadas em relação ao texto plautino. A figura da bela
Alcmena plautina, por exemplo, será vertida em Maria da Paz no romance. Porém, por
ser deslocada, essa transposição possui certas modificações: se, na narrativa plautina
Alcmena não possui uma alma de heroína trágica, em
O Homem Duplicado
Maria da
Paz terá essa alma trágica que falta à matrona latina. Tal alma já se delineia no nome de
Maria da Paz. O nome da personagem porta, alegoricamente, a revelação de uma de
suas facetas: sua aproximação em relação à figura de Maria, mãe de Jesus. Tanto a mãe
de Jesus quanto a namorada de Tertuliano Máximo Afonso carregam as semelhanças de
serem penitentes, caridosas e donas de trajetórias de vida dedicadas ao homem e à sua
humanização.
Outro ponto necessário de ser pensado é a questão da fertilidade que tanto
Alcmena quanto Maria da Paz expressam, seja no nome, seja na vocação. Entretanto, se
a figura bíblica tem sua marca carregada de passividade, as personagens de Plauto e de
Saramago não são assim tão passivas. É o que fica patente nos excertos a seguir:
Não é verdade que, na existência, na juventude, há muito poucos prazeres, ao
lado do que nos causa dor? Pode-se fazer uma verificação na vida dos
homens. Mas foi isso que os deuses quiseram: que a dor sempre
acompanhasse o prazer. Assim que alguma coisa boa sobrevém, vem também
algo mais doloroso e pior. Eu acabo de ter essa experiência em casa e falo por
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Concorrer com o autor, desejar fazer, em nossa língua, tão bem quanto ele na sua.