questionamento, o deslocamento do coro no romance tem uma função paródica, pois o
autor imita um procedimento recorrente na tragédia clássica com o objetivo de
questioná-lo, demonstrando que os alicerces antigos foram sobrepostos por uma nova
realidade, a da cisão pós-moderna.
Saramago ressignifica o senso comum em seu romance. Essa noção materializa-
se por meio da soma do coro acrescido de uma espécie de voz consensual (ou a
Doxa
de
que nos fala Roland Barthes: “a Opinião pública, o Espírito majoritário, o
consensus
pequeno-burguês, a Voz do Natural, a Violência do Preconceito” (Barthes, 1977, p.
53)). O senso comum é uma “cartilha popular”, à semelhança das tábuas da lei
oferecidas a Moisés, verdadeiros mandamentos da conduta humana, paródia do código
de Hamurabi.
Importa-nos perceber que o Senso Comum mantém um constante diálogo com
Tertuliano Máximo Afonso, de modo a exercer sua tradicional função repressiva,
fundada em valores que o poder estabelece sorrateiramente e que se tornam
inquestionáveis. Ganha estatuto próximo de personagem, mas permanece um domador
de comportamentos ousados, um amansador de cidadãos, um perpetuador do sistema
das ideologias a ele subjacentes.
Por fim, Tertuliano Máximo Afonso e seu duplo António Claro/Daniel Santa-
Clara são as últimas personagens deslocadas do
Amphytruo
plautino. Os dois são partes
constitutivas de uma terceira personagem que vai sendo moldada nas linhas e
entrelinhas do romance, o Sr. Tertuliano Máximo Afonso/ António Claro/Daniel Santa-
Clara: um ser que assume a vida de um, mas com a subjetividade do outro dentro uma
terceira realidade, a de ser um e outro ao mesmo tempo.
Se, em Plauto, temos dois pares de duplos, no texto de Saramago temos apenas
um par. Porém, cada um desses pares é, em verdade, um ser duplo, que possui dois
nomes ou duas personalidades, que expressam, por outros meios, aquele segundo par de
duplos da peça plautina. Assim, eles podem expressar, num primeiro momento, o
deslocamento da situação de duplicação pela qual passou Anfitrião. Temos, portanto,
uma relação intertextual alusiva, já que a estrutura da peça plautina é deslocada para o
romance saramaguiano; mas identificamos ainda uma relação interdiscursiva, pois a
alusão também acontece com relação à temática que a segunda obra incorpora da
primeira.