é o que opõe, por exemplo, a tradição metafísica que se funda no um, na unidade, na
identidade, a um pensamento do múltiplo, que se funda na diferença, no corpo, no rastro
imotivado, no rizoma. É dentro dessa perspectiva de lugar de entrada do “outro” que
surge o sujeito pós-moderno. Podemos ainda reconhecer que a questão da identidade,
em
O Homem Duplicado,
visa, também, ao redimensionamento do eu em um mundo
condicionado pelo capitalismo e pela cultura consumista, ao redimensionamento de um
ente perdido, que tem seus modelos de comportamento sociais ditados por essa
sociedade.
A presença desse
outro
, física e emocional, concretiza a existência do eu.
Conhecendo a alteridade, o eu descobre-se a si próprio como ser humano e exibe o seu
ser profundo. Mas, como a própria alteridade se constrói necessariamente em função do
outro, uma identidade lábil e flutuante resultará também numa forma deficitária de
relação. A alteridade na qual a mera identificação com o outro substitui a interação
dispensa quase por completo a participação ativa do outro. Mais do que isso, esse outro
pode representar uma ameaça à frágil identidade do sujeito que com ele “interage”. O
outro é fator de desestruturação do mesmo quando eles não interagem entre si.
Temos desse jeito que, se na antiguidade clássica, a figura do duplo foi usada
por Plauto na representação lúdica de substituição de identidades distintas, na sociedade
líquida hodierna representada por Saramago, ela passa a significar, cada vez mais, a
divisão e, no limite, até o estilhaçamento da identidade, representando o drama do eu
que se alienou de si mesmo. Não há conquista de alteridade, só fragmentação.
Podemos, pois, concluir pela viabilidade de um diálogo entre ambas as obras em
análise. Confirmamos, por meio das análises e comparações, que, dialogicamente, as
duas obras ora se aproximam, ora se distanciam uma da outra. Esse diálogo transita por
marcas, ora mais, ora menos explícitas. O motivo do duplo –eleito para cotejá-las –
constitui-se num recurso que ressalta a fragmentação das personagens e sua consequente
crise de identidade, sendo que, na Antiguidade, essa fragmentação é apenas conflitiva,
sendo um elemento reordenado no final da peça, enquanto, na contemporaneidade, é
inconclusiva por natureza. Isso porque não podemos mais pensar em uma Literatura que
apresente a visão do todo. Hoje, a Literatura é de fragmentos. O eu não é mais
focalizado individualmente, mas como parte do todo fragmentário que a Literatura
representa.