Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 940

circulação. À medida que fazemos outras leituras desse conto, atribuímos o enriquecimento
do protagonista à combinação dos equívocos interpretativos do protagonista com os do
povo do lugar. O conto encena erros de leitura e, ironicamente, torna-os causa da ascensão
do protagonista. O leitor de
Tutaméia
não pode se identificar ao ouvinte que cochila e o
próprio autor declarou a Paulo Rónai que essas
Terceiras estórias
propõem ao leitor uma
corrida de obstáculos (ROSA 1979, p.194). Requerendo do leitor total adesão ao texto, o
autor brinca com nosso desejo de encontrar no texto a revelação da boa ventura de Gedeão,
no desfecho considerado pelo povo do lugar como “sócio da sábia vida” (ROSA 1979,
p.79). A convenção cômica do final feliz estimula a continuidade interpretativa, desafia a
desautorização do ouvinte rude como produtor de sentido e afeiçoa-nos à universalidade na
recepção do texto mítico propondo-a positivamente. Simultaneamente, o leitor deverá
atentar para a natureza do texto literário, do texto sagrado, dos tipos de leitura para pensar
as perspectivas em que o conto encena situações de erro interpretativo.
Gedeão pára de trabalhar e acaba prosperando. O primeiro parágrafo do conto
“Grande Gedeão” incluído em
Tutaméia
de Guimarães Rosa descreve a grandeza corporal
do protagonista, um gigante. Assemelha-se a um patriarca arcaico: raciocínio débil, corpo e
imaginação vigorosos. “Os Gouveias em geral por lá são assim”: “físico, muscular;
incogitante. (...) Louvavam-no homem mui reformado e exemplar, prontificado de caráter,
na pobreza sem projeto” (ROSA 1979, p. 77). “Lá” não tem nome, um espaço
imprecisamente situado na história como nos mitos historicamente produzidos a partir do
reconhecimento público de um sentido superior em determinadas práticas locais que dão
sentido às sociedades e as fundamentam. Uma sociedade desenvolve-se em torno de
modelos produzidos por mitos de prosperidade que os patriarcas figuram como
possibilidades de realização nos limites do lugar. “De Gedeão, grande, conforme os
produzidos fatos”. Gedeão torna-se um patriarca, um próspero do lugar, após interpretar
equivocadamente o discurso mítico no sermão proferido por um missionário que passava
por lá. A princípio, era um homem sem ambições. Sua motivação de viver como os
pássaros do céu gera controvérsias – da mulher, do povo, do padre local – que se sucederam
à decisão de parar de trabalhar. Depois, o desfecho reverte essa situação limite inicial com
o enriquecimento do protagonista favorecido pelo povo que intrigado com aquela súbita e
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