I Anais do Simpósio de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - SILALP - page 129

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O eu-lírico inicia o poema elucidando o conceito de universalidade ao citar o
canto doloroso e a tristeza “no Congo, na Geórgia, no Amazonas”, conduz a leitura para
as tristezas e anseios, a princípio de modo sereno, como se vê na segunda estrofe:
“Ainda / o meu sonho de batuque em noites de luar” - e aos poucos adquire tom mais
emotivo como se observa nas estrofes seguintes quando escreve sobre “gritos”, “dorso
vergastado” e pontua a luta diária de quem espera.
A utilização de partes do corpo funciona como metáforas. Os braços podem
representar a força, a ação e o trabalho; os olhos seriam a visão, o conhecimento e o
discernimento; os gritos seriam a voz, a expressão concreta da dor, possivelmente
corresponderia aos gritos pelas feridas, se atentarmos à estrofe seguinte composta pelos
dizeres de violência física sofrida pelos negros, provavelmente daqueles que foram
escravizados.
Os versos: “coração abandonado / a alma entregue a fé”, reforçam a ideia de
cansaço e conduzem o pensamento para a confiança de quem espera, embora no
próximo verso afirme “ainda a dúvida”. Nesta estrofe ele afirma que acima dos cantos,
olhos, gritos e “sobre o meu mundo isolado”, está o tempo parado, ou seja, acima de
todos os sentimentos e ações de resistência, há a estagnação e a ausência de mudanças.
A concepção de “olhos” e “gritos” supracitada compreende que há um embate entre o
que eu-lírico sente e o que acontece em seu presente (conflito também observável em
Pessoa ao refletir sobre o sebastianismo). Há aqui a marcação da dificuldade de se
manter a fé, devido ao tempo que não modifica a situação, ou seja, o tempo não passa.
Na sexta estrofe, o eu-lírico continua com a repetição “Ainda” para evidenciar a
falta de modificação, mas neste ponto há a tradição, pois fala de seu espírito, dos ritmos,
isto é, das músicas de seu ritual orgíaco e cita instrumentos musicais típicos de África
como o quissangue, instrumento musical angolano feito de palhetas e de som baixo e
delicado, e da marimba, outro instrumento de percussão feito com lâminas de madeira.
Na sétima estrofe “vida” apresenta-se no sentido pessoal e no sentido coletivo,
para isso o poeta utiliza a inicial da palavra em cada estrofe de um modo. Quando
aborda “vida” de maneira pessoal, a palavra aparece com inicial minúscula e, quando
fala coletivamente, em maiúscula. Portanto, “Ainda a minha vida/oferecida à Vida” nos
traz a ideia da vida do eu-lírico entregue às experiências coletivas do mundo, ao próprio
ato de viver (relação também apontada por Pessoa na escrita das poesias). A estrofe
termina com “ainda o meu desejo”, como que encerrando a ideia da entrega.
Na oitava estrofe, o eu-lírico retoma o pensamento de “sonho”, “grito” e
braço”, mas agora colocando as palavras no singular, reunindo-as de forma a dar ideia
de sustento ao desejo, que ainda não foi revelado, mas que é transcrito ao final do
poema.
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