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século XVII– e, depois, os românticos do século XIX que aspiravam a República deram
impulsão cultural e ideológica aos desejos dos brasileiros em ter uma literatura e uma
nação reconhecidas e independentes. O romance de Sila carrega, assim, esse duplo
movimento (estético e político) análogo, mas sintético, da literatura brasileira do
período de suas primeiras manifestações: é uma forma que procura se adaptar ao
contexto nacional na medida em que busca, também, uma contestação à ordem vigente:
no caso, contra o poder ditatorial nacional pós-colonial, que traiu e corrompeu as
principais bandeiras da luta anticolonial.
Na narrativa, a equação da crioulidade ocorre, sobretudo, pela síntese das duas
personagens principais. Mbubi e Daniel. Mbubi é a raiz eleita pelo autor como a mais
“autêntica” da nação bissau-guineense. Essa raiz carrega o símbolo da simplicidade e da
esperança do povo da Guiné-Bissau, que, deslocado do poder, em face do assalto de
uma certa elite cultural e política ao Estado, vive ainda à margem social e das principais
decisões políticas e administrativas do país. No período colonial, como cozinheira
doméstica, ela conheceu na prática e sob a agressão sexual, a cultura predatória e imoral
dos colonizadores. Sua beleza fora vista como uma “injustiça” em relação à patroa
branca. Sabemos que, no conflito colonial, qualquer atributo positivo dado ao negro
logo se convertia em castigo, sendo, muitas vezes, justificativa para o exercício
constante da violência. Entretanto, Mbubi conservou a serenidade e o espírito de união
que trazia de sua comunidade, situada nos confins do país. Com Mbubi, temos a
ilustração de que a vida dos desfavorecidos do tempo colonial não se alterou na pós-
colonialidade. O Estado, com tantos vícios (apesar dos esforços), foi incapaz de
promover reformas educacionais e econômicas significativas, e o problema da reforma
no setor militar guardou constantemente surpresas amargas.
Dan, dada a sua caracterização na narrativa, é a representação mais nítida da
cultura crioula. Sua raiz, embora possamos remetê-la ao continente africano– pois
descendente de negros que viveram a diáspora–, é demasiado obscura para tracejarmos
uma origem identitária mais exata. Sabemos vagamente de sua trajetória através das
poucas informações fornecidas pelo narrador. Trata-se de um estrangeiro vindo dos
Estados Unidos da América, professor universitário, formado, com mérito, em ciências
agrárias, e engajado no desenvolvimento em África de uma agricultura solidária, que
pudesse responder às demandas por alimentos do povo africano. Esse lado vencedor de
Dan contrasta com a tragédia da vida pessoal e familiar, com pai enforcado, mãe morta
sem socorros médicos, uma irmã suicida e, no decorrer da narrativa, recém separado,