A escrita historiográfica, seus protocolos e fontes - page 32

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do que se trata? Com a indisponibilidade de “orelhas” ou “contracapas”, a saída é
correr algumas páginas até um lugar de conjunturas intelectuais e políticas, de
confissões e justificativas, de possíveis e impossíveis, enfim, o prefácio
iii
. Neste
espaço, pode-se conhecer um pouco mais da composição do livro intitulado
Études
d’histoire religieuse
:
O hábito de reunir em livros os ensaios publicados em coletâneas de
periódicos, para o qual muitas pessoas olham como sinalizando uma
tendência infeliz na literatura contemporânea, é a consequência
inevitável da importância que assumiram, há alguns anos, os
trabalhos de revistas e a parte literária de certos jornais diários. Seria
inútil reimprimir simples resumos, destinados unicamente a anunciar
uma obra e não contendo nenhum estudo em primeira mão. Mas,
desde o momento em que os artigos críticos, com ou sem razão,
deixaram de ser fragmentos e análises para se tornarem trabalhos
substantivos, não se pode considerar ruim que o autor pense em dar
uma publicidade mais duradoura para partes que, muitas vezes, lhe
solicitaram mais pesquisas e reflexão do que um livro original. Talvez,
este novo gênero de literatura seja considerado no futuro como
aquele que pertence mais essencialmente à nossa época, e
consequentemente, como o que em nossa época teve o melhor êxito.
Eu não considero se isso será um elogio ou uma crítica do tempo em
que estamos; basta que o gênero seja reconhecido como uma das
mais importantes formas da produção intelectual no momento
presente, para que não se possa acusar de pretensões deslocadas e
de um culto exagerado às suas próprias obras os autores que
coletam trabalhos, de frágil mérito talvez, mas aos quais eles deram
todos os seus cuidados (RENAN, 1857a, p. I-II, tradução nossa)
iv
.
Agora se sabe que este livro é composto de ensaios publicados em periódicos.
E que a principal justificativa deste ato está em “dar uma publicidade mais duradoura”
a tais trabalhos (CHARTIER, 2007). Este “novo gênero de literatura” que ganha sua
relevância a partir de um ponto de vista futuro
v
, seria, para Renan, aquele que mais
essencialmente pertenceria a sua época.
Pode-se destacar este último aspecto para dizer de algo recorrente nos artigos
de Renan. Ao brincar aqui com o, no mínimo, duplo sentido da palavra “caracteres”
que, tanto em francês quanto em português é plural de “caractere” e de “caráter”,
penso em uma das buscas incessantes dos textos renanianos (não dele apenas,
possivelmente): definir o caráter, ou os caracteres, do século XIX.
Ao “desobedecer” os conselhos de Renan a respeito da inutilidade de “simples
resumos” que buscariam “anunciar um livro”, pode-se ler em um artigo de 1848, que
delimita o recorte inicial desta pesquisa, outro caráter de seu século. Neste texto que
objetivou resumir e criticar um livro a respeito da história da filologia, Renan significou
as pesquisas que articulam filologia e filosofia como típicas de sua época (RENAN,
1848, p. 296-298). Nas palavras de Renan: “A união da filologia e da filosofia, da
1...,22,23,24,25,26,27,28,29,30,31 33,34,35,36,37,38,39,40,41,42,...180
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