Enquanto Lazarilho era criança e durante seu processo de vassalagem a vários
amos, sua análise crítica era mais eficiente. Podemos observar tal aspecto no momento
em que, no início da história, por ocasião da rejeição do padrasto negro de Lazarilho
pelo próprio filho, o pícaro, ainda criança, pensa: “Quantos não deve haver no mundo
que fogem dos outros porque não enxergam a si mesmos” (Anônimo, 2005, p. 31). A
ideia desta frase, o não enxergar a si próprio, é retomada ao longo da narrativa,
principalmente durante o episódio do escudeiro falido, que não possuía o que comer,
mas mesmo assim não se submetia ao trabalho, certo de que isto não era condizente com
sua postura “nobre”. A respeito desse motivo estruturador, González esclarece que
Lázaro,
[...] quando assume a função de narrador de sua história, parece não ver a si
próprio. E isso se dá numa sociedade em que ele mesmo vem nos mostrando
a falsidade das aparências. No final de sua trajetória, Lázaro parece não ver
que suas aparências já não enganam. (González, 1994, p. 116).
Por meio dessa “cegueira” que toma o narrador, intitui-se a ambiguidade no
romance, demonstrando que Lázaro completou a sua evolução como pícaro e efetuou
sua integração à sociedade por meio do cultivo da aparência de bom homem. A
personagem/narrador Chalaça compartilha dessa ambiguidade, exposta nas inúmeras
vezes em que sua conduta expressa um posicionamento diverso do que realmente pensa.
Seja no primeiro capítulo, no qual tenta convencer seu cocheiro Calimério (e
principalmente a si próprio) de que as sexagenárias são melhores amantes do que as
raparigas de vinte anos (Torero, 1994, p. 11), pois estava cortejando uma senhora nobre
e de muitas posses, seja nos momentos em que procede com fingimento.
O papel do narrador, de seu ponto de vista, na conjugação dos romances de
Lazarilho e de Chalaça toma uma importância majoritária. Em ambos, a narrativa
posiciona sua visão a partir de uma perspectiva central, pois se trata de um narrador
autodiegético, aquele que narra sua própria história. A ambiguidade é instaurada no
discurso das duas obras, pois, uma vez que o protagonista tenta enganar a si próprio,
isto é transferido à sua ação como narrador e, por conseguinte, tentar-se-á incutir o
engano no leitor. Este, contudo, deixa de ser um receptor passivo para construir sentidos
e, se necessário, rever sua leitura. Como expõe González (1994, p. 120): “Se quem narra
é um pícaro, é fundamental que o leitor desconfie de suas informações e interpretações.
Há então, um espaço para a ambigüidade entre o narrador e o protagonista, que o leitor