Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 995

1994, p. 107). De início, o modo como o evento é narrado já pode incutir no leitor a ideia de
aproximação para o plano do humano, retirando o acontecimento (ou a memória textual que
dele se tem, mas atribuída de um caráter de verdade pelo discurso da história) da imagem
heróica que dele se teria. No caso de um estudo voltado ao aspecto da construção literária,
caberia citar Bakhtin (1987) e seus conceitos de realismo grotesco e a carnavalização,
relacionados à descrição da satisfação das necessidades naturais (como a defecação), a vida
sexual, bebida e imagens do corpo nos pontos em que ele entra em contato com o mundo,
ligados ao “princípio da vida material e corporal” (Bakhtin, 1987, p. 16), que, sob a forma
carnavalizada de uma situação ou personagem, realiza a “transferência ao plano material e
corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual,
ideal e abstrato” (Bakhtin, 1987, p. 17). Entretanto, no caso do leitor comum, ou seja, não
familiarizado com tais concepções, a criação carnavalizada procederia a um efeito menos
consciente, provocado geralmente pelo humor que as situações deste modo ancoradas
provocariam, estabelecendo uma visão duplicada do registro oficial. Essa, certamente, é apenas
uma das possibilidades de recepção do texto, cabendo citar também casos em que preconceitos
do leitor, como a crença na história como verdade, poderiam criar certa resistência para a
apreensão dos sentidos fomentados pela criação literária voltada à construção carnavalizada.
Voltando à narração da cena, enquanto as personagens, inclusive D. Pedro e
Chalaça, haviam realizado uma parada na viagem para defecarem, chega um emissário
oficial da corte trazendo correspondências que anunciavam a destituição de Pedro de
seu cargo de príncipe regente, bem como limitando seus poderes e ameaçando-o com as
tropas reais. Chalaça comenta já esperar que o príncipe responderia à afronta, mas
surpreendeu-se pela agilidade do ato: primeiramente ordena “Laços fora, soldados”
(Torero, 1994, p. 109), com certa hesitação devido à indignação e indisposição que lhe
acometiam. Os laços representavam as armas portuguesas, e eram estimadas pelos
soldados de alta patente. Em seguida, montando em seu asno e de espada
desembainhada, o príncipe demonstra, segundo Chalaça, “que estava tomado e que o
seu pensamento não andava no mesmo passo que as suas emoções” (Torero, 1994, p.
110), e de espada erguida, grita “Viva a independência e a separação do Brasil. [...] Pelo
meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro promover a liberdade do Brasil”,
para então soltar o famoso mote “Independência ou morte!”, no qual é secundado por
Chalaça. No final do capítulo, novamente por meio do narrador Francisco Gomes, é
destilada a ironia ao expressar que “é essa história que se conta até hoje no Brasil, e eu
dou fé que é verdadeira. [...] como julguei sempre a minha primeira obrigação obedecer
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