Essas proposições se integram à questão tratada a respeito da intertextualidade
como fundamental ao processo de leitura e seu funcionamento na própria apropriação
dos textos passados, a partir de uma mudança de perspectiva sobre tais textos e
concepções de leitura:
a intertextualidade substitui o relacionamento autor-texto, que foi contestado,
por um relacionamento entre o leitor e o texto, que situa o
lócus
do sentido
textual dentro da história do próprio discurso. Na verdade, uma obra literária
já não pode ser considerada original; se o fosse, não poderia ter sentido para
seu leitor. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto
obtém sentido e importância. (Hutcheon, 1991, p. 166)
Com isso, a construção de sentidos na interação com o material literário se dá
pela intertextualidade, o que ocorre em diversos níveis de profundidade e consciência; o
próprio texto fornece marcas que direcionam a leitura, no caso, por exemplo, da
reconfiguração das imagens históricas, variando, entretanto, a efetividade com a qual
determinadas marcas irão ecoar no conhecimento prévio do leitor.
Outro intertexto possível de emergir da leitura d’
O Chalaça
(1994) é a picaresca
espanhola, a partir da obra
A vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e
adversidades
(2005), de autor anônimo e publicadas em meados do século XVI. Além
de essa obra ser mencionada durante o romance como uma leitura de Francisco Gomes
–
“Eu relia um luxuoso volume de aventuras de Lazarilho de Tormes e me esforçava para não
ser visto nos momentos em que uma risada me escapava” (Torero, 1994, p. 90)
–
ela integra a
composição do texto pela conjugação de diversos motivos estruturadores e da presença
da personagem com tons anti-heróicos narrando sua própria história. Tal diálogo
intertextual permeia o romance de Torero, aspecto sobre o qual não nos aprofundaremos
neste trabalho, apenas trazendo alguns pontos que interligam as obras, muito em função
das personagens Lazarilho e Francisco Gomes: o jogo de máscaras que se institui,
visualizado na valorização a aparência de “homem de bem” e na imagem de
autenticidade dos textos; a persuasão e diálogo com o narratário, ou seja, preocupação
com a recepção dos textos; a trajetória das personagens, a preocupação com a
vestimenta. É possível perceber a conexão entre tais motivos, dos quais resgatamos em
especial o motivo do “cego”, do não enxergar a si próprio, que, além de apontar para o
primeiro amo de Lazarilho,
refere-se à gradual perda de sua capacidade de percepção e
entendimento de si próprio inserido na sociedade.