Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 1257

todos juntos, contrariam completamente a idéia de concentração, definida como
indispensável para esse gênero narrativo.
Um dos exemplos de desconstrução textual fragmentária está corporificado por
meio da enumeração caótica:
Ele entra tal qual um relógio. / Outro entra igual um martelo. / É relógio, alfinete, é
faca. / É abajur, é enxada, é pá. / É ouro, é prata, é ferro. / É história pra lá e pra cá. / É
sanfona, é imagem, é tela. / Porcelana chinesa ou barata. / É o cheiro, é a merda, é o pai.
/ É navalha, é livro, é não sei que mais. / É isso, é aquilo. / É moeda, é bordado com um
ponto falso. / É auto retrato, é baixo relevo. / É por grama, é por quilo. / É tesouro, é
tesoura, é o diabo. / É guarda-chuva, é sombrinha. / É tudo, é nada. / É utensílio de
cozinha ou de quarto. / É madeira, é de pinho, é de lei. / É a vida, é dura, é fato. / É
verdade, é mentira, é boato. / É cabide, é bidê, é o fim do caminho. / É pau, é pedra. / É
farinha, é pó, é o talco. / É o senhor, é você, é obrigado. / É coisa nenhuma, é o caralho
a quatro. / É de novo, é outra vez. / É um ciclo, é compasso. / É chinelo, é sapato, é
sandália. / É pescador, é mercador, é engraxate. / É tintureiro, é vagabundo. / É óculos
de tartaruga, é pé de pato. / É coisa nova, é coisa velha, é semi-usado. / É charuto
cubano, é o vazio da caixa. / É uma cena, é um filme, é um ato. / É grifo, é garfo. / É
maciço, é oco. / É elástico, é borracha, é plástico. / É o pé do coelho, é a boca do sapo. /
É um jogo ou é só partida. / É o azar, é a sorte. / É a porta que bate (
Idem
, p. 138-39).
No fragmento, encontramos um emaranhado simultaneamente diversos de
acontecimentos, a justaposição de frases autodestrutivas, ou pares antitéticos, nos quais
a primeira nega a segunda. Os diversos elementos são contextualizados durante a ação
do romance – como, por exemplo, o relógio, o livro ou o garfo (metonímia de faqueiro),
peças que algumas personagens tentam vender ao narrador – são justapostos e, fora de
contexto, se fragmentam e se desconstroem por meio dessa avalanche desenfreada que
toma conta desse ponto da narrativa.
A estrutura textual dialoga com a música de Tom Jobim, “Águas de Março”,
mencionada anteriormente, realizando uma paródia, que se configura como uma forma
de intertextualidade, de modo a recriar por meio da síntese a performance da
protagonista em sua atividade principal de comprar coisas a baixíssimo preço, ao
mesmo tempo em que cria uma relação de exploração e ódio.
Em resumo, cria o desconcerto por meio de sua auto-referencialização. Tem-se
uma sobreposição de planos, que contrastam com os recursos que dão profundidade às
cenas. Neste jogo, os objetos escolhidos – fragmentos do real – são focalizados
detalhadamente, sendo alguns de modo exagerado. Recolhidos e reunidos em novo
contexto, esses fragmentos criam um hiper-realismo.
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