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como cenário a cidade de Salvador, Bahia, por volta dos anos de 1830. Nesse
momento na Bahia oitocentista persistia o costume de os sepultamentos serem
realizados nas igrejas, o mais próximo possível dos santos e altares, pois, segundo
Reis, acreditava-se que “a proximidade física entre cadáver e imagens divinas, aqui
embaixo, representava um modelo da contiguidade espiritual que se desejava obter, lá
em cima, entre a alma e as divindades. A igreja era uma das portas de entrada no
Paraíso” (REIS, 1999, p.171).
Nesse contexto, o viajante francês Jacques Arago, em passagem por Salvador,
comentou que “os vivos passeiam sobre os mortos” (ARAGO apud REIS, 1999, p.175,
observando o tipo de sepultamento ainda praticado. Tendo em vista o fato de as
igrejas baianas do período não possuíam qualquer espécie de assento, as famílias,
quando muito fatigadas pelo rito, sentavam-se sobre os túmulos e lápides. O espanto
de Arago se dá, sobretudo, em razão de que essa forma de sepultamento já havia
caído em desuso na Europa, como já apontara Ariès.
A essa prática nos reportarmos para melhor entendermos um evento ocorrido
em Salvador em 1936 e que ficou conhecido como “cemiterada”. Tratou-se de um
movimento popular que se deu em razão da proibição legal do enterro nas Igrejas e a
concessão do monopólio de um cemitério na cidade a uma empresa privada. Reis
aponta que fizeram parte dos protestos confrades de todas as irmandades de
Salvador, além de ter havido grande participação popular. Os manifestantes, após
insistências para reunirem-se com o Presidente da Província, marcharam até o
Cemitério Campo Santo – o alvo da polêmica –, que havia sido recém-inaugurado, e lá
iniciaram um quebra-quebra geral. João José Reis destaca o fato de que nem a capela
que lá existia foi poupada, o que, segundo o autor, demonstra que aquele espaço, aos
olhos da população, não era um local sagrado e, portanto, eles não poderiam ser lá
enterrados. O autor também sugere que os religiosos envolvidos no conflito poderiam
estar preocupados com a manutenção do “monopólio” que exerciam sobre a morte e,
mormente, sobre os sepultamentos e todos os fatores pecuniários que deles
decorriam.
A cemiterada é uma demonstração de como as mentalidades não mudam
repentinamente em face da promulgação de uma lei. Na Europa, há dois séculos já se
manifestava a tendência de não enterrar nas Igrejas, no entanto foi apenas no século
XIX, com a produção mais eficaz de um discurso, sobretudo sanitário, que se adotou
como padrão o enterro cemiterial. A população baiana, ainda imbuída dos valores de
que a salvação dependia da proximidade das imagens dos santos e do próprio espaço
sagrado da igreja, manifestou sua discordância.