realidades. Graças à onisciência do narrador, somos informados daquilo que nem o herói
nem o povo alcançam. Uma anedota de não senso aparente propõe um mito na estória. O
narrador aponta obliquamente os sentidos das práticas do lugar contrastando a verdadeira
motivação do herói, mítica, à aparente ascensão que se confirma por meio do favor do
povo. As diferenças entre a anedota e a estória escapam ao povo, que fabula uma
identificação entre elas.
Se disse, depois, que então já andava ele desengrivado. Diz-se que de manhas
meras, quão e tão. Se diz aliás que a gente troca de sombra, por volta dos quarenta,
quando alma e corpo revezam o jeito de se compenetrar. E quem vai saber e dizer?
Em Gedeão desprestava-se atenção (ROSA 1967, p. 77).
Depois de apresentar as fabulações do povo, o narrador aproxima-se por
onisciência das causas verdadeiras. “Vocês sendo não sendo mais valentes que os
pássaros?!” O missionário havia marretado a provocação à valentia do herói ativo e
sonolento em sermão, “ipsisverbal”, de sério cavalo (de circo) a pleno passarinho. O
sono do herói e o sentido hierárquico conferido à “noção abecedada” dos viajantes
alegorizam a impossibilidade de agenciar o mito. As narrativas míticas produzem efeitos
de sentidos superiores que contradizem as causas aparentes. O narrador integra os níveis
dos erros, da anedota de não senso ao novo mito do patriarca que lhe dá coerência e produz
outro supra-senso ao demonstrar como o erro também constitui o sentido. Assim, sabemos
que Gedeão errou, que o povo errou e que os missionários erraram por supor controle da
interpretação em terreno mítico. Essa série de erros produz o próprio sentido do erro
como limite impreciso, ainda que revelada a proliferação de erros.
Bibliografia consultada
BENJAMIN, Walter (1987). “O narrador”, in:
Magia e técnica, arte e política
. São Paulo,
Brasiliense.
DELEUZE, Gilles (2006).
Lógica do sentido
. São Paulo, Perspectiva.