recobrindo-a com a voz do herói, que possuiria uma “autoridade ideológica” e uma
“perfeita independência”, passando a ser compreendido como autor de suas próprias
concepções e não como objeto da visão artística de Dostoiévski (BAKHTIN, 1970, p.
31)
No romance polifônico, a personagem não deveria ser a porta-voz da ideologia
de seu criador, mas ter um ponto de vista particular sobre o mundo e sobre si-mesmo,
pois “l’important n’est pas de savoir ce que représente le personnage dans le monde,
mais ce que le monde représente pour le personnage et ce que celui-ci représente pour
lui-même” (IDEM, . 82). Instaura-se, desse modo, a noção de
consciência de si
; ou seja,
as características da personagem, sua profissão, seu aspecto espiritual e mesmo físico
tornam-se objeto de sua própria reflexão. Assim, a parte descritiva da personagem,
anteriormente compreendida como um momento de definição na narrativa que emanava
do autor, passa a ser um momento de auto-definição. O herói, portanto, nunca
representa o autor, rompendo a unidade monológica do mundo artístico e tornando-se
relativamente livre e autônomo.
Parece possível vislumbrar “embriões” da polifonia na “Teoria do Medalhão”
de Machado de Assis, da mesma forma que Bakhtin observou nas obras de Shakespeare,
Rabelais e Cervantes. Ao comentar o estudo de Lounatchrski sobre os precursores
1
de
Dostoiévski no domínio da polifonia, o filósofo argumenta:
Il nous semble que A.V. Lounatcharski a raison, dans la mesure où l’on trouve
effectivement dans les drames de Shakespeare certains éléments, certains
embryons, de la polyphonie. Shakespeare, Rabelais, ainsi que Cervantes,
Grimmelshausen et d’autres encore, appartiennent à ce courant de la littérature
européenne où ont lentement mûri les germes de la polyphonie, et que
Dostoiévski est venu couronner (BAKHTIN, 1970, p. 69)
“Teoria do Medalhão” é um conto construído em forma de diálogo direto, sem a
presença, portanto, de um narrador. As personagens não são apresentadas ao leitor, que
tem acesso somente à conversa que se inicia após o jantar:
Estás com sono?
Não, senhor.
Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
1
Lounatcharski refere-se a Shakespeare e Balzac em
De la pluralité des voix chez Dostoiévski
. (APUD
BAKHTIN, 1970, p. 68)