Voltando à questão da metafísica, a despeito da morte de Deus em Nietzsche,
perceber-se-á que ainda nos resta a sua sombra, pois embora esteja morto, sua sombra
paira sobre os homens criadores desse Deus, esses homens que não cessam de divinizar,
criar ídolos e regras morais, tal como explica Nietzsche em
A gaia ciência
(2001,
p.135).
A crítica à moral e à criação de valores irá aparecer em Dostoiévski
particularmente em
Memórias do subsolo
e em
Crime e Castigo,
embora em
Crime e
Castigo
a culpa e a punição do próprio herói apareçam em vários momentos. O ato
realizado pela personagem demonstra uma reflexão sobre sua atitude, ou seja, não há
um crime cometido, uma vez que a personagem assassinada representa para
Raskólnikov um mísero
piolho,
e assim como outros homens derramaram sangue, como
Napoleão, ele também pode fazê-lo. Dessa forma, o crime nessa obra não é entendido
por esta personagem como um crime, de acordo com a análise de Paulo Bezerra. Seria
arriscado talvez comparar tal personagem com o além-do-homem exposto por
Nietzsche, homem que está além do bem e do mal, pois a mencionada personagem
ainda vive em um derradeiro limite; no entanto, a discussão de tal questão mostra-se
pertinente. Poder-se-á ou não comparar Raskólnikov com a idéia do além-do-homem,
de acordo com o pensamento nietzscheano? Ao pensar sobre essa questão há que se
recorrer a Bakhtin, pois em sua obra:
Problemas na poética de Dostoiévski
, ele torna
presente a importância dos duplos na obra do autor:
(...) quase todas as personagens principais dos romances dostoievskianos têm vários
duplos, que as parodiam de diferentes maneiras. Raskólnikov tem como duplos
Svidrigáilov, Lújin, Lebezyátnikov; Stravróguin, Piótr Vierkhoviévsnky, Chátov,
Kirílov; Ivan Karamázov, Smerdiakov, o diabo, Rakítin. Em cada um deles (ou seja, dos
duplos) o herói morre (isto é, é negado) para renovar-se (ou melhor, purificar-se e
superar a si mesmo) (BAKHTIN, 1981, p.110).
Talvez, neste momento, seja possível uma analogia com o além-do-homem de
Nietzsche, embora a proposta desses pensadores seja realizada de formas diferentes. O
recurso ao duplo da personagem não deixa de ser uma paródia característica da sátira
menipéia
3
dos gêneros carnavalizados, como relata Bakhtin, porém esse recurso ao
duplo instiga a alusão ao além-do-homem da filosofia nietzscheana, uma vez que a
proposta de superação do humano está lançada, mesmo que ainda restem resquícios
morais. A menipéia é um gênero antigo na literatura, ao que tudo indica teve origem
3
Sobre as características da menipéia conferir o capítulo 4: Particularidades do gênero e temático-
composicionais das obras de Dostoiévski do texto:
Problemas da poética de Dostoiévski
de Bakhtin.