Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 846

se utiliza de argumentos baseados no consenso e aparente raciocínio lógico. Em sua
análise acerca de possibilidades, utiliza-se de métodos indutivos e dedutivos para
justificar, por eliminatória, o milagre de ser, entre tantos outros sujeitos, a “eleita” das
folhas.
Assim, é a repetição, que se configura como a possibilidade concretizada e
reiterada, e não o inusitado, que concretiza seu milagre: “Isso me acontece tantas vezes
que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas”. O momento epifânico
em que é tocada pela folha realiza-se pelo corpo e alma integrados, sem limites. Com as
mãos retira a folha e guarda-a, objeto de sua transcendência. O lirismo predominante, a
esta altura, coloca em xeque o conhecimento superestrutural de um leitor desavisado ou
menos experiente. Não se trata, como ele poderia imaginar, de um texto leve e
despretensioso, mas de uma leveza que conduz à intensidade da constatação do eu-
narrador e de uma despretensão que induz o encontro com a complexidade do mundo
exterior: “Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais
diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha
seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança”.
O milagre da reiteração ocorrerá novamente: “E também porque sei que novas folhas
coincidirão comigo”.
Encerrando a crônica, o passado da memória ou subjetividade exprime-se por
“um dia”. A subversão do verbo que pode significar para o leitor que tem de aceitar o
silêncio, a lacuna ou o vazio como parte do sentido, traz o milagre para o qual não é
preciso ter esperança, dado sua possibilidade recorrente de se concretizar. E isto é
exatamente o milagre, não o sobrenatural, mas o natural, possível e previsível: “Um dia
uma folha me bateu nos cílios. Achei
Deus
de uma grande delicadeza”.
Em síntese, a epifania realiza-se em dois planos: no da narradora, manifesta na
tessitura textual; e no do leitor implícito que amplia seu horizonte de expectativas ao
romper com seu conceito prévio de que os milagres não acontecem com a narradora,
como esta afirmara na abertura do texto. Ele pode perceber que a circularidade do texto
reside no par antitético negação x afirmação. Desse modo, a afirmação de que “Deus”
possui delicadeza, anula a negação inicial de que milagres não acontecem. O fecho do
texto solicita do jovem leitor o retorno à leitura, contudo de forma ressignificada,
crítica, pois não mais confia nas afirmações da narradora. Essa releitura, por sua vez,
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