Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 836

O texto de Clarice Lispector, “O milagre das folhas”, classifica-se, quanto à sua
infraestrutura (BRONCKART, 2009, p. 249), como crônica. Esse gênero literário muito
cultivado na literatura nacional exige do leitor mais atento certa amplitude na tentativa
de defini-la. Geralmente associada à ideia de texto leve e breve, para Massaud Moisés
(2005, p.108) “[...] a crônica é por natureza uma estrutura limitada, não apenas
exteriormente, mas, e acima de tudo, interiormente”.
Recorrendo à comparação, pode-se afirmar que o conto, por exemplo, constitui-
se por meio de uma construção mais cuidadosa e atenta das personagens, do tempo, do
espaço, acrescentando densidade ao enredo. O cronista, porém, age de uma forma mais
solta, despretensiosa. Para Jorge Sá (2002), o cronista pretende apenas ficar na
superfície de seus próprios comentários, sem ter a preocupação de se colocar na pele de
um narrador que é, principalmente, personagem ficcional, como acontece no conto e no
romance, ou seja, a crônica aproxima-se do bate-papo, como se o autor/narrador
estivesse espontaneamente apresentando uma história, um comentário, uma “prosa”.
Pode-se notar que esta forma dialógica, instaurada como conversa informal com o leitor,
prevalece no texto de Lispector,
a seguir transcrito (SANTOS, 2007, pp.186-87):
O Milagre das Folhas
Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me
basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que
só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres:
“Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se
quebraria.” Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das
empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles
que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já
vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de
adormecer – seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso
até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as
imagens inconscientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de
linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um
leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e
segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando
pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência
da linha de milhares de folhas transformadas em uma única, e de milhões de
pessoas a incidência de reduzí-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que
passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos
furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto
diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha
seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como
lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.
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