Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 600

alguns cânones que os meninos de 12 anos da época tinham que dominar, até que na
página 17 o narrador constrói/desconstrói a aura de paraíso com a seguinte passagem:
Então Paulo veio por baixo d’água, nadando o mais silenciosamente que conseguia,
aproximou-se de Eduardo, de quem agora via o corpo por baixo, e fez a brincadeira que
sabia que seu amigo detestava: virou a bóia e puxou-lhe a cueca para o meio das pernas.
Eduardo afundou, engoliu um pouco de água, subiu tossindo.
Paulo nadou para a margem, rapidamente, rindo, fazendo sons que imitavam os berros
dos índios vitoriosos sobre os caras-pálidas invasores dos filmes de faroeste vistos em
matinês de domingo no Cine Theatro Universo, enquanto Eduardo se recompunha,
resmungava alguma coisa e nadava, em grandes braçadas, tentando alcançá-lo.[...]
Foi então que Paulo caiu ao tropeçar em alguma coisa.
Era um corpo.
Uma mulher, loura, de braços e pernas abertos, suja de sangue e lama.
O seio esquerdo tinha sido cortado fora.
Tanto o movimento dos olhos do narrador (de baixo para cima) quanto os
recursos lingüísticos alocados na construção da cena (descrição detalhada da ação,
procurando construir no leitor/enunciatário a sensação de cumplicidade dos meninos),
prestam-se para a construção no plano de conteúdo de uma inocência pueril na
brincadeira entre os meninos Paulo e Eduardo, face à brutalidade da maculação de seu
paraíso, ao encontrarem o corpo mutilado de uma mulher nesse mesmo espaço.
Certamente, lembrando as palavras de Eagleton (2006, p.21),
todas as nossas
afirmações descritivas se fazem dentro de uma rede, frequentemente invisível, de
categorias de valores; de fato, sem essas categorias nada teríamos a dizer uns aos
outros.
É a valência da amizade, inocência e a brutalidade da violência do assassinato
que se articulam no plano semiótico para a produção da identificação com a narrativa
por parte do leitor/enunciatário. A produção de sentido então alça vôo rumo ao processo
de projeção dos anseios e expectativas da instância de recepção para com o texto,
produzindo assim a empatia em maior ou menor grau por determinados personagens
que compõem o tecido polifônico da obra romanesca moderna. Refugiar-se em um lago
para nadar amplia sua significação ao percebermos que o sentido no plano de expressão
da obra romanesca é então “fixado” para todo o sempre através de uma série particular
de sinais materiais. Estamos diante de uma questão de consciência e não de palavras
propriamente.
Não é uma questão pura e simplesmente de encadeamento de ideias, tanto que
na
cena
seguinte, o olhar do narrador/enunciador coloca o leitor/enunciatário no
ambiente
delegacia
, quando o primeiro diálogo tradicionalmente estruturado aparece e
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