milagre lembrado pelo adjunto adnonimal “das folhas”, como geralmente costumam se
identificar, na cultura popular brasileira, os milagres de modo geral (“das águas”, “do
ribeirão”, “da pesca”). O termo qualificativo e restritivo – “das folhas” – também não
esclarece de que “folha” se trata – papel ou vegetal. Ao adentrar o texto, as folhas
sequer aparecem, mas uma dupla negativa possivelmente muito conhecida por parte dos
jovens leitores escolares como elemento comunicacional cotidiano: “Não, nunca me
acontecem milagres”. O uso hábil da vírgula permite que o leitor compreenda,
inicialmente, que a voz narrativa nega de modo veemente o acontecimento
extraordinário ou inexplicável em sua vida.
Em tom de comentário, a narradora faz valer a voz como meio de comunicação
comum, divulgador de milagres e, por isso, próprio para expor, explicar, contar.
Também, como meio de banalização do que seria o fato especial, incrível:
Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também
me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a
ouvir conversas assim, sobre milagres: “Avisou-me que, ao ser dita
determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria.”
Nota-se que o leitor está sendo envolvido por meio do jogo literário, no qual a
autora lança-o via ilocução nos entrechos da significação. Considerando o leitor como
aquele que “sabe” do que ela está falando, cria-se o espaço do silêncio, do não-dito,
como se o texto falasse na surdina: “Você sabe do que estou falando, daquele
sentimento...”.
A aceitação por meio do ato ilocucional permite à autora inserir uma observação
lapidar, logo após uma constatação banal – o fato de seus objetos quebrarem nas mãos
das empregadas. O uso dos dêiticos “daqueles” imprime o caráter de generalização,
comentário, conclusão trivial de que há mais pessoas que também fazem isto – “rolam
pedras durante séculos”. A expressão remete o leitor ao mito de Sísifo
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, eternamente
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Conforme Pires (2009): no Hades, encontramos a imagem desse mito, já habitando no vale das sombras,
rolando eternamente, sob a forma de castigo imposto pelos deuses, um enorme bloco de pedra morro
acima, para vê-lo despencar morro abaixo. Apesar de mortal, Sísifo tem ascendência divina, pois é filho
do deus do vento Éolo. Em algumas versões é retratado como muito inteligente e usa dessa virtude para
trapacear homens e deuses. Sísifo foi pai de Ulisses, fundador e rei da cidade de Corinto e a pedra que ele
carrega simboliza seu ofício de construtor. Quanto ao castigo, ele o recebeu, segundo uma das versões,
por ter delatado Zeus, que sequestrara a filha de Adopo, em troca de receber deste uma fonte permanente
de água para a sua cidade.