objetivamente explicado. É neste ponto que o leitor, acreditando estar diante da mais
ampla aceitação do não-milagre, novamente é surpreendido pelo texto.
Uma vez desocupado o espaço do conceito e da razão colocados no âmbito do
trivial, o texto sutilmente introduz o milagre, subvertendo o termo. O que as pessoas
acham que seja milagre, a narradora afirma ser “coincidência”: “Vivo de coincidências,
vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve
e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu
falasse nele, já estaria falando em nada”. Para definir este ponto de coincidências, é
preciso usar a palavra em percurso de metalinguagem que, quanto mais explica, menos
elucida. Verbalizar o “indizível” é transformá-lo em palavras que não dizem. No limite
do dizer/não-dizer, o silêncio, a lacuna, o vazio preenchem o significado. A percepção
do mundo ao redor e dentro de si mostra a outra face do milagre, que não é feito de
coisas surpreendentes e grandes como as pedras, mas de pontos delicadamente
interligados, reveladores da existência e da verdade.
Nota-se que, para a autora-narradora, o divino está no fato, desse modo, ambos
não são excludentes. Da mesma forma não o são a fé e o conhecimento empírico. Em
síntese, seu texto trata da epistemologia da fé que se efetiva no cotidiano observável,
por meio do milagre, para os sujeitos que sabem reconhecê-lo.
A verdade revelada, como descreve Rossoni (2001), perturba os sentidos
ordinários – principalmente visão e tato –, conduzindo os personagens, no caso, a
narradora, a uma alteração psíquica. Na crônica, narra-se o efeito dessa alteração,
embora ela não ocorra como ação narrativa na brevidade do relato. A epifania pelo tato,
pela voz, pela visão, constitui o nó do entrecruzamento. A dupla negação inicial abrira o
espaço para a afirmação final: “Mas tenho um milagre sim. O milagre das folhas”. Um
milagre que ocorre em um tempo qualquer, em uma rua qualquer e possível a qualquer
pessoa. Ao contrário dos outros para os quais os milagres já vêm prontos, para ela, a
ocorrência possível é o milagre: “Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha
exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhares de folhas transformadas em
uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzí-las a mim”.
Quanto ao plano geral da obra, sua infraestrutura, o paradoxo apresenta-se
também na fusão de discursos, no caso do científico com o discurso coloquial de base
empírica. No plano da argumentação, embora a narradora trate de fatos do cotidiano, ela