Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 684

mostram em suas obras tanto uma nova forma de se fazer arte (pautada não no gosto
público, mas sim em criticá-lo), quanto um novo tema a ser revelado (as mazelas
humanas que estão no inconsciente).
Porém, as palavras desses escritores trazem a Orfeu um estranho conceito de arte
poética: o poeta deve cultivar em si o desregramento de um assassino que se une à
natureza através do crime.
Na Grécia Antiga, o poeta Orfeu usava sua lira para acalmar as feras, para cantar o
sofrimento de quem foi eternamente separado de sua amada para guiar o homem, enfim,
ao caminho de uma vida ascética pautada no aperfeiçoamento da humanidade.
Na nossa contemporaneidade, o canto de Orfeu é o canto de morte propagado por
aquele que cultiva conscientemente o instinto assassino das feras, seu amor tem no
sangue das vítimas a eternidade de uma união, e sua poesia mostra o caminho de quem
escolheu beber da fonte interdita para ser um assassino.
Na Grécia Antiga, Eurídice, morta, pôde sentir a grandeza de um amor capaz de
descer aos Infernos para buscá-la; pôde ouvir o canto melodioso de Orfeu antes de ser
sugada pelas trevas eternas, pôde pedir ao seu amado que libertasse os gregos e os
levasse à luz.
No nosso tempo, Eurídice é convidada por Orfeu a habitar o Inferno das mortes
mostradas no filme
O julgamento de Nuremberg
, ouve com o amado o canto nazista de
morte e, sugada pelas trevas que habitam os assassinos, participa de um amor que tem
nas mortes alheias a seiva para viver eternamente.
Para Sartre, lembramos, a força da paixão não existe e Eurídice, portanto, também
escolheu conscientemente o caminho do assassínio. Para o quinto jurado ela é a Eva
responsável pela queda de mais um Adão. Para a terceira mulher-jurado e para o
promotor, uma vítima de uma paixão intensa. Contudo, preferimos trazer à nossa
conclusão a fala em que Myra Hindley, personagem que inspirou Santareno a criar sua
Eurídice, no filme
Longford
, explica porque cometeu os crimes: “Se estivesses lá,
naquela noite, nos pântanos, ao luar, quando matamos o primeiro, você saberia que o
mau também pode ser uma experiência espiritual” (Hooper, 2006).
Feuerbach, na frase trazida por Orfeu a seu caderno, observa que vivemos em uma
época em que a Bíblia foi substituída pela razão, o Céu pela terra, o Inferno pela miséria
e Cristo pelo homem.
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