Segundo o doutor Manchester, personagem santareniana que proferiu as palavras
acima, os participantes do julgamento de Orfeu e Eurídice estão preocupados em
condenar os assassinos às penas previstas na lei. Contudo, salienta o psiquiatra, mais do
que aplicar a penalidade, caberia aos homens compreender os motivos que levaram os
assassinos a tais ações.
O doutor observa que Orfeu e Eurídice foram vitimados pela orfandade e pela
guerra quando eram crianças e, ao crescerem, revidaram ao meio social as agressões que
dele tinham recebido. Portanto, para o doutor Manchester o pensamento determinista
explicaria a existência dos “amantes da charneca”.
Como psiquiatra, Santareno também poderia delinear um diagnóstico monológico
acerca dos assassinos. Todavia, trazendo à sua peça uma multiplicidade de mundos, o
autor prefere discutir polifonicamente a existência de seres como Orfeu e Eurídice.
Ao definir a forma monológica do romance, explica-nos Bakhtin:
Como vimos, a colocação da ideia em literatura costuma ser totalmente monológica.
Nega-se ou afirma-se a ideia. Todas as ideias afirmáveis se fundem na unidade da
consciência autoral que vê e representa; as ideias não-afirmadas são distribuídas entre as
personagens, porém não mais como ideias significantes e sim como manifestações
socialmente típicas ou individualmente características do pensamento. O autor é o único
que sabe, entende e influi em primeiro grau. Só ele é ideológico. As ideias do autor
levam a marca de sua individualidade. Deste modo, a significação ideológica direta e
plena e a individualidade nele se combinam sem se enfraquecerem mutuamente. Mas
apenas nele. Nos heróis, a individualidade destrói a significação das suas ideias e
quando essa significação se mantém elas descartam a individualidade dos heróis e
combinam-se com a individualidade do autor. Daí o acento ideológico único de uma
obra, o surgimento de um segundo acento é fatalmente interpretado como uma
contradição prejudicial dentro da visão de mundo do autor. (Bakhtin, 2005, p. 82).
Ao contrário do texto monológico, Santareno não emite em sua peça somente a
visão naturalista que o Doutor Manchester possui. Polifonicamente, ele acrescenta à
tentativa de compreender os assassinos outros conteúdos ideológicos que se
enfraquecem ou se fortalecem mutuamente por serem, muitas vezes, antagônicos ou
complementares.
Como vimos, com o intuito de justificar os assassinatos que cometera, Orfeu
subverte as ideias expressas por vários autores da literatura. Entretanto, como muitos
jurados conhecem as obras originais citadas pelo assassino, a verdadeira opinião dos
literatos vêm à tona. Além disso, a análise dos enunciados envolvidos no julgamento
dos “amantes diabólicos” é capaz de nos revelar entendimentos diversos acerca da
existência dos indivíduos cruéis.