homem e, se precisasse de milagre, não era homem. [...] Então
ande logo por cima da água e não me abuse, disse Quinca. E eu
só preocupado com a falta de paciência de Deus, porque se ele
se aborrecesse, eu queria pelo menos estar em Valença, não aqui
nesta hora. Mas ele só patati-patatá, porque ser santo era ótimo,
que tinha sacrifícios mas também tinha recompensas, que
deixasse daquela besteira de Deus não existir, só faltou prometer
dez por cento. Mas Quinca negaceava e a coisa foi ficando preta
e os dois foram andando para fora, num particular, e, de repente,
se desentenderam. Eu, que fiquei sentado longe, só ouvia os
gritos, meio dispersados pelo vento.
- Você tem que ser santo, seu desgraçado! – gritava Deus.
- Faz-se de besta! – dizia Quinca.
E só quebrando porrada, pelo barulho, e eu achando que, se
Deus não ganhasse na conversa, pelo menos ganhava na
porrada, eu já conhecia. Mas não era coisa fácil. De volta de
meia-noite e meia até umas quatro, só se ouvia aquele cacete:
deixa de ser burro, infeliz! cale essa boca, mentiroso! E por aí ia.
(RIBEIRO, 1981, p. 162-163)
Na progressão do narrado, é possível notarmos que as blasfêmias e profanidades
incorporam-se ao discurso das personagens (Deus e Quinca das Mulas), mas também
transcursam em todo o conto, o que demarcaria a linguagem específica da carnavalização, em
que ocorre um nivelamento social e a abolição das formalidades e etiquetas. Outro aspecto
carnavalizante pode ser notado com a surra cômica que Deus dá em Quinca, por ele não
concordar com os desmandos do primeiro. Tal ação representa e reiteraria a redução do alto
ao baixo, da necessidade divina de convencer por meio da força física, e não pela
argumentação oral.
Esse traço marca a composição da personalidade humanizada da personagem divina,
que se configura no limiar da impaciência e da amizade e bondade que demonstra, ao entrar
em contato com as pessoas daquele lugar, mais especificamente na feira. As pancadas
proferidas por Deus não se encontram exclusivamente nessa parte da narrativa, mas
igualmente no momento em que a figura divina revela-se para nosso narrador-pescador (ainda
no início da diegese), que assim como Quinca das Mulas não acredita de imediato no que diz
Deus, como já destacado nesse texto.
Instaura-se no conto uma retomada hipertextual do conteúdo das narrativas bíblicas e
pós-bíblicas, no tocante à argüição e recrutamento divino de novos santos ou enunciadores de
sua palavra e ideais. Nesses textos, quando as personagens negam a vontade divina, como
ocorre com Jonas, no “Velho Testamento”, em “Jonas foge em vão da Palavra de Deus e