Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 663

Em sua nova vida, ele se torna querido pelos malandros do local, como o cabo Martim,
Curió, Negro Pastinha, Pé-de-Vento, e também por Quitéria do Olho Arregalado, moradora de
um prostíbulo da Ladeira de São Miguel. A teimosia desregrada da personagem de Jorge
Amado é o mote que perpassa a composição moral de Quinca das Mulas. Vale lembrar o
chavão popular que caracteriza sua personalidade: “teimoso feito uma mula”, assimilado e
aproveitado rizomaticamente por Deus na narrativa ubaldiana. Nela o narrador nos informa
que das Mulas poderia ter se mantido rico, tal como Berro Dágua, mas doou todos os seus
bens, “sendo estas boas pessoas dele todas desqualificadas” (RIBEIRO, 1981, p. 160);
corrobora-nos também ser ele desaforado, bebedor assíduo de cana, que vivia rindo e convicto
de sua posição atéia, o que freqüentemente ocasionava brigas entre ele e o padre Manuel.
Nessas últimas características já é possível entrevermos uma inversão dos valores tipicamente
esperados para alguém que almeje se tornar santo (a partir de uma visão claramente
cristalizada da ética cristã), mas bastante propícias para a cosmovisão carnavalesca, de que
versa Bakhtin em
Problemas da poética de Dostoiévski
(2002).
Ao encontro dessa visão carnavalizada do mundo, no conto “O Santo que não acreditava
em Deus”, há também o destronamento e dessacralização da própria figura divina. Ela é
rebaixada à categoria humana, seus atributos são profanados, suas características, tanto físicas
quanto emocionais, alinham-se à pura condição de homem. Estamos diante de um caso atípico
nas narrativas ficcionais: Deus transfigurado em homem. Segundo as reflexões de Bakhtin, e
corroboradas por Samira de Mesquita, embora essa figura não possa ser verificada em nossa
realidade empírica, esse toque de fantasia carnavalesca é perfeitamente possível para as obras
de cultura.
A arte em geral, e, portanto, a literatura, cria realidades
possíveis, gera significações possíveis e se torna muitas vezes,
profética. O realismo mágico, o universo fantástico, as utopias, a
science fiction
, são exemplos mais flagrantes das possibilidades
extremas da relação ficção/realidade (MESQUITA, 1987, p. 17).
A “descida” dessacralizante de Deus ocorre ainda no inicio da narrativa, quando nosso
narrador enche-se de pegar carrapatinhos com a linha que outra personagem, Luis Cuiúba, lhe
havia trazido; ele pensa se vale a pena remar no sol até o pesqueiro de Paparrão, bebe sua
quartinha de limão e a glorifica. É nesse contexto que ocorre, para nosso narrador, o momento
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