Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 113

Todos reconhecem, quer dizer, a publicidade parte do princípio de que o
público-alvo reconhece como verdade o fato de que a maçã é o fruto proibido, na
medida em que, no drama relatado no Velho Testamento, esse seria o fruto da árvore da
ciência do bem e do mal. Com efeito, o enunciado maçã remete ao exterior e ao anterior
de sua existência, isto é, remete primordialmente ao mito referente à esposa apresentada
na história de Adão e Eva, o casal designado, primeiro pelos hebreus e depois pelos
cristãos e mulçumanos, a ser progenitor da raça humana.
Eva, para muitos a mãe ancestral da humanidade, foi rapidamente insultada por
ser a primeira mulher-esposa-mãe desobediente; foi castigada e, no decurso da história,
estereotipada na memória como o símbolo da tentação, por ter sido seduzido Adão e o
arrastado ao pecado mortal. Por sua culpa, ambos foram expulsos do jardim do Éden.
Em meio à “sentença de morte” determinada pelo Criador, que visava
fundamentalmente ensinar que as desventuras dos seres humanos na terra provinham da
desobediência do primeiro casal à ordem divina, não há, no Velho Testamento, qualquer
menção sobre qual seria, de fato, o fruto desencadeador de toda a maldição da
humanidade, fadada a viver com o fardo do trabalho, o sofrimento, as dores no parto e a
morte. Foi somente por volta do século XIII, da era cristã, que a verdade-acontecimento
sobre tal fruto irrompe. A maçã foi eleita para representar o pecado original e,
atravessando as diferentes épocas, ela se sedimentou como verdade-demonstração,
indissociável do mito da origem da criação. Mas por que maçã?
Segundo Flahaut (2007), em latim
malum
(a “maçã”) e
malum
(o “mal”)
diferenciam-se unicamente pela pronúncia da vogal
a,
breve naquela e longa nesta. Na
expectativa de transformar o drama em questão em algo mais claro e mais concreto para
os fiéis, “os mensageiros privilegiados” (Foucault 2006), ou seja, autoridades religiosas
da Idade Média optaram pela tradução de
malum
-maçã para identificar o “fruto da
árvore da ciência do bem e do mal”, atribuindo uma versão mais simplificada da
transgressão. Estava, assim, criada e legitimada a verdade sobre o fruto proibido tão
largamente explorado em anúncios publicitários, a exemplo da PP1.
A maçã, portanto, emerge na materialidade complexa daquela peça atualizando
outros enunciados que falam de desejo e de tentação, já que investida de sentidos
implícitos associados incontornavelmente ao caráter pecaminoso do feitiço relatado no
Gênesis. Pelo reencontro da memória (Pêcheux 2007), tem-se a recorrência e a repetição
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