Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 115

identitário não questionável, quando, a rigor, ela é uma construção histórica. Vale,
portanto, recuperar pelo menos duas práticas comuns entre os séculos XVI e XIX que
desnudam a verdade sobre o amor maternal abnegado e natural.
A primeira diz respeito à prática de entregar um recém nascido à Roda dos
Expostos, uma espécie de caixa giratória, instalada em asilos ou hospitais, cuja estrutura
permitia que aquele que abandonava a criança não fosse visto por aquele que iria
socorrê-la. As crianças ali “depositadas” não possuíam qualquer referência e ficavam
aos cuidados, nem sempre atentos, de enfermeiras ou religiosas. Com relação à segunda
prática, também se costumava encaminhar o recém nascido a uma ama de leite que
ficava com a criança até a idade de seis anos. Dentre as razões que levavam as
mulheres-mães a se desvencilharem dos bebês e recorrerem às amas de leite, segundo
Foucault (1979) e Perrot (2007), destaca-se o fato de que muitos homens achavam
excessivo o tempo dedicado ao bebê, somado à crença de que durante a amamentação o
sexo era interditado. As famílias ricas, então, selecionavam as amas que atendiam em
domicílio. Mas milhares de crianças foram enviadas ao campo, às casas das amas.
Tanto o abandono na Roda quanto o envio às amas, provocavam grande índice
de mortalidade infantil, pois os hospitais e asilos ressentiam-se de higiene e de recursos
para cuidar dos bebês que chegavam ininterruptamente; muitas vezes, chegavam
doentes, desnutridos ou já quase mortos. As amas de leite, por sua vez, viviam em
estado de muita pobreza e aceitavam grande quantidade de recém-nascidos unicamente
porque careciam de dinheiro. Em meio à precariedade e à miséria de diversas ordens, o
número de mortos nessa indústria do aleitamento impressiona: “algumas amas tinham
um índice de dezenove crianças mortas em vinte que lhe haviam sido confiadas”
(Foucault 1979, p.276). Somem-se a isso tudo os “infanticídios e os abortos que eram
muito praticados a ponto de constituírem métodos de regulação da natalidade” (Perrot
2007, p.70).
Foi diante desse quadro, em que muitas outras variáveis poderiam ser
acrescentadas (as epidemias e a fome, por exemplo), mais particularmente diante de
certo desprezo com relação à criança e de certa familiarização com a morte (Foucault
2005), que se tornou urgente a instauração, no século XVIII, de um regime de governo
voltado para uma política capaz de gerir e controlar a vida da população. Foi necessário,
em decorrência, fazer funcionar o biopoder de que fala Foucault (1988), cujos efeitos,
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