Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 859

transmissão estética, e não documental. Analisemos brevemente algumas das primeiras
frases da obra, indicando, entre parênteses, as injunções possíveis.
O paradoxo definido Antônio Candido a respeito dessa obra, ao
classificá-la como uma “fábula realista”, é inteiramente útil para compreendermos o
jogo das representações engendrado na narrativa. A frase de abertura do romance (“Era
no tempo do rei.”) nos permite inferir a duplicidade dos modos de recepção. O “tempo
do rei”, perfeitamente reconhecível pelo leitor da época, que talvez compartilhasse do
saudosismo do narrador (
injunção afetiva
), soa para o leitor contemporâneo como um
período remoto, dado pelo pretérito imperfeito, ao modo das fábulas, e cujo
distanciamento – mais cultural do que propriamente temporal – virtualiza um sentido
universalizante, permitindo a entrada no texto pelo olhar fabuloso das narrativas que
constituem forçosamente seu repertório: os contos de fadas, desenhos animados, filmes
de época etc. (
injunção intelectual
).
No primeiro capítulo, a oposição estabelecida entre um
hoje
e um
no
tempo do rei
é estabelecida por um narrador parcial, que inicia logo no segundo
parágrafo uma apresentação da categoria dos meirinhos do tempo do rei da seguinte
maneira:
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se
nesse tempo
O canto dos meirinhos
—;
e bem lhe
assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos
dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). (ALMEIDA, 1997, p. 11)
Sua parcialidade fica mais evidente no seguinte trecho:
Os meirinhos de
hoje
são homens como quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem
no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente
de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos
desse belo tempo
não, não se
confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia
um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam
chicana. (ALMEIDA, 1997, p. 11)
O prazer das memórias experimentado por aquele que nos conta
nostalgicamente a história, revela seu descontentamento diante do momento histórico
em se situa (
injunção ideológica
). Esse posicionamento ideologicamente marcado do
narrador pode conduzir o leitor atual a uma tensa tarefa de construção do sentido em
dupla perspectiva: por um lado, busca imaginar, com base em seu repertório restrito, os
cenários, tipos e costumes do período régio (
injunção intelectual
), incluindo a
compreensão de um modo de falar estranho ao seu uso habitual da língua (
injunção
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