Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 911

em uma linguagem irônica e metaficcional ao colocar na boca do elemento demoníaco a
análise da demonologia que funde as múltiplas crenças populares e de culturas diversas
com a figura forjada pelos teólogos medievais, demonizando os poetas e aludindo à
astúcia feminina, que é capaz de vencer o demo, com uma explícita referência às
histórias do demônio logrado, tão presentes na cultura popular. Também não deixa de
referir-se ao demônio na dimensão do mito, cujas formas “plásticas” assumem a feição
das águas que se moldam ao recipiente em que se encontram aludindo, assim, à infinita
capacidade do demônio de se atualizar e refletir a “cara” de seu tempo.
O historiador Robert Muchembled em
Historia del Diablo
2
(2002, p.20-21)
assinala que os elementos díspares da imagem demoníaca existiam há muito tempo, mas
somente nos séculos XII e XIII é que ocuparam um lugar decisivo nas representações e
nas práticas demonológicas para se converterem em uma imagem terrível e obsessiva no
final da Idade Média. Para ele, a criação de um discurso sobre o diabo não se limitou
aos teólogos e religiosos, mas esteve intimamente relacionada ao surgimento de uma
linguagem simbólica que se impunha como um discurso unificador sobre um continente
fragmentado em suas estruturas políticas e sociais e que poderia ser comparado a uma
verdadeira torre de Babel linguística e cultural. A invenção do diabo e do inferno
estaria, portanto, relacionada a um grande movimento proveniente dos altos estratos
sociais e das elites religiosas desejosas de inventar um Ocidente diferente do passado,
forjando traços culturais comuns que serão fortalecidos nos séculos seguintes. Assim, o
historiador registra um grande esforço, por parte dos teólogos, para unificar o satanismo
proveniente do Antigo e do Novo Testamento, além das diversas narrativas orientais
sobre o tema, já que era preciso unir a história da serpente com a do rebelde, do tirano,
do tentador, do sedutor e do dragão poderoso.
A narrativa de Cardoso Gomes traz elementos diferenciados no cenário do mito
fáustico se comparada à narrativa de Carlos Ruiz Zafón, ambas da década de 90.
Enquanto Zafón reproduz uma figura satânica exterior ao indivíduo que com ela
estabelece um pacto, Fernando Cão protagoniza a “possessão” do elemento satânico; o
que justifica o subtítulo “possessão” do episódio terceiro do Livro VII, que é a sua
autobiografia e onde descreve a relação incestuosa com a irmã Isabel: “O choro do Cão
sai do meu corpo , o Cão que me fez querer Isabel” (Gomes 1997, p.317). Ao mesmo
2
Estamos utilizando a obra traduzida ao espanhol do original em francês
Une historie Du diable
. Paris:
Éditions Du Seuil, 2000.
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