ARTIGO
POEMAS COMOGORJEIOS:
MANOEL DE BARROS
A poesia moderna con-
sagrou as tensões disso-
nantes como procedi-
mento formal e temático.
Manoel de Barros (1916-
2014), poeta brasileiro dos
mais gabaritados, é exem-
plar na produção de disso-
nâncias que geram, simul-
taneamente, inquietação
e fascínio: “Distâncias so-
mavam a gente para me-
nos”, afirma no prefácio
de sua
Poesia Completa
(2013), denominado “En-
trada”, para evocar uma
via de acesso pleno. Sim,
entramos em um universo
com leis próprias, descon-
certantes e admiráveis.
Aprendêramos, antes de
entrar, que somar acres-
centa. Nas contas do eu-
-lírico manoelino, porém,
as distâncias somam as
pessoas para menos. As-
sim é, porque, ampliando
o ermo, as distâncias tal-
vez aumentem a solidão...
O aparente ilogismo cava
uma exatidão mais pro-
funda e nova. Manoel de
Barros não explica, ape-
nas alude, convicto de que
“Ao poeta faz bem/ De-
sexplicar – / Tanto quanto
escurecer acende os vaga-
lumes” (
O Guardador de
Águas, 1989
).
Seus poemas são po-
voados por seres e obje-
tos desimportantes, para
lembrar que tudo quan-
to seja esquálido é apto a
converter-se em poesia:
“Tudo aquilo que a nossa
/ civilização rejeita, pisa e
mija em cima, / serve para
a poesia // Os loucos de
água e estandarte / ser-
vem demais / O traste é
ótimo / O pobre-diabo é
colosso” (Matéria de Po-
esia, 1970). A consequên-
cia disso é o aparecimento
de uma autêntica poética
Reitor:
Julio Cezar Durigan
Diretor:
Ivan Esperança Rocha
Vice-Diretora:
Ana Maria Rodrigues de Carvalho
Coordenação:
Cláudia Valéria Penavel Binato
Edição:
Equipe do JNC
Textos e Reportagens:
Jenifer Aleixo; Landara Zinhani, Marcelo Inácio
Revisão:
Cláudia Binato; Eliane Aparecida Ribeiro Galvão Ferreira
Diagramação:
Mayara Crispim
Colaboração Técnica:
Lucas Lutti; Seção Técnica de Informática
Esta é uma publicação da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Núcleo Inte-
grado de Comunicação. Comentários, dúvidas ou sugestões, entre em contato
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Expediente
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Nosso
Câmpus
outubro/2015
de experimentação das
“grandezas do ínfimo”.
Para Manoel de Barros, a
poesia resulta do “crian-
çamento” da linguagem,
devendo pautar-se por
uma percepção – do mun-
do e das palavras – afiada
pela cognição primeva.
Não por acaso, distri-
bui os versos de suas me-
mórias por três infâncias.
Nas suas imperdíveis Me-
mórias Inventadas (2003),
infância, juventude e ve-
lhice são igualmente in-
fâncias. Os tantos anos
de vida não subtraíram
a leveza criadora de seu
espírito-menino. Feliz-
mente, o recluso Manoel
de Barros cedeu aos ape-
los do cineasta Pedro Ce-
zar para dar vida ao docu-
mentário
Só dez por cento
é mentira
.
A desbiografia
oficial de Manoel de Bar-
ros
(Brasil, 2009). Nesse
documentário primoroso,
ouvimos o sorridente po-
eta nonagenário afirmar:
“Eu só tive infância”. Para
Manoel de Barros, a poe-
sia comunga da dicção in-
fantil em sua necessidade
de fazer o verbo delirar:
“Eu escuto a cor dos pas-
sarinhos” (
O Livro das Ig-
norãças
). E compõe, com
verbo delirante, poemas
que se apresentam como
Compêndio para uso dos
pássaros (1960), Concer-
to a céu aberto para solos
de aves (1991), Poemas
Rupestres (2004) e tan-
tos outros títulos-verso.
De 1937 a 2010, publicou
mais de vinte obras, que
o incluem entre os mais
originais poetas de língua
portuguesa, e também
entre os poetas que mais
vendem livros.
A poesia de Manoel de
Barros permite vivenciar
a transubstanciação das
palavras e dos conceitos.
Na sua aparente simpli-
cidade lírica, desenha
um mundo complexo,
afeito às metamorfoses.
Dos poemas saltam ver-
sos tão simples quanto
inusitados: “Eu queria
crescer para passarinho”
(
Livro sobre nada, 1996)
,
“Eu queria ser lido pe-
las pedras” (
idem
), “Sou
fuga para flauta e pedra
doce” (
Arranjos para as-
sobio, 1980
), “Um sabiá
me aleluia” (
O Livro das
Ignorãças, 1993
). A par-
titura manoelina remete
ao assobio, à celebração
do nada que é tudo e das
“ignorãças” poéticas que
recriam o mundo. Seus
acordes ou gorjeios mi-
nimalistas compõem uma
obra monumental que
muito honra a língua por-
tuguesa brasileira, afinal:
“Minhocas arejam a terra;
poetas, a linguagem” (
Li-
vro de Pré-Coisas, 1985
).
* Sandra Ferreira
(Depto. de Literatura
UNESP/Assis)
Recentemente entre nós para ministrar curso sobre Manoel de Barros, o Prof. Giorgio Sica, da
Universidade de Salerno, traduziu o Livro sobre Nada para o italiano. Para Sica, exímio conhece-
dor de poesia moderna, Manoel de Barros é dos maiores poetas contemporâneos ocidentais.
Ilustração: Fernando Romeiro