O
Primo Basílio
e o gênero romance
Juliana Casarotti Ferreira
Mestranda/UNESP-Assis
Orientador: Rosane Gazolla Alves Feitosa
O
romance O Primo Basílio de Eça de
Queirós, publicado em 1878, é uma obra fundamental do Realismo-Naturalismo
português. Inova a criação literária da época, oferecendo uma crítica aos
costumes da pequena burguesia de Lisboa. Eça de Queirós promove um ataque a
uma das instituições burguesas tidas como mais sólidas: o casamento. O autor,
que já demonstrara sua opção por uma literatura de crítica social em O Crime do Padre Amaro, onde retrata o provincianismo do ambiente humano da pequena cidade de
Leiria, desta vez, elege personagens que retratam a vida fútil da capital
Lisboa em O Primo Basílio.
Eça
de Queirós explora o erotismo do tema do adultério, quando mostra, de forma
detalhada, a relação entre os amantes, diferente do modo sentimental de
encarar o tema realizada pelos românticos. Também inova ao incluir diálogos
sobre homossexualismo em seu texto. Cria personagens despidas de virtudes
vivendo situações dramáticas geradas a partir de sentimentos fúteis e de
mesquinharias. Os lances amorosos se iniciam por motivações vulgares e medíocres.
Tudo o que Eça faz tem por objetivo despertar o interesse e ao mesmo tempo
atacar a sociedade lisboeta. O Primo Basílio
representa um dos primeiros momentos de reflexão sobre o atraso da
sociedade portuguesa em um mundo profundamente transformado pela Revolução
Industrial e pelo desenvolvimento tecnológico.
Não
há dúvida, no contexto da crítica literária, quanto à classificação de O
Primo Basílio como um romance. Romance, aliás, que teve e continua tendo
êxito tanto de crítica quanto de público, desde a primeira edição posta à
venda em 28 de fevereiro de 1878. Na época os 3000 exemplares se esgotaram em
poucos meses, uma façanha para o tempo. Mas, quais seriam os argumentos para a
obra queirosiana alcançar a categoria de romance? As personagens Luísa, Jorge,
Juliana e Basílio poderiam povoar outro gênero, que não o romance? A questão
dos gêneros é ainda hoje complexa e os teóricos da literatura adotam
posicionamentos distintos nessa classificação que visa a ordenar a
multiplicidade de fenômenos literários.
O
presente artigo pretende encontrar no texto ficcional O Primo Basílio evidências formais que demonstrem que a obra é um
romance. Para isso, tomamos como ponto de partida a leitura e a análise da
obra, O Primo Basílio, buscando no
texto literário argumentos que demonstrem sua participação no conjunto de
textos denominado romance.
A
representação do mundo modifica-se de acordo com as épocas de desenvolvimento
da literatura e assim os gêneros. Organiza-se de modos distintos e é limitada
de várias maneiras no espaço e no tempo.
O romance é um gênero inacabado,
ou seja, ainda está se formando, diferentemente dos outros gêneros, já há
muito tempo constituídos, como é o caso da epopéia, que se define como algo
criado há séculos, além de ser um gênero profundamente envelhecido. De
acordo com Bakhtin:
O
romance não é simplesmente mais um gênero ao lado dos outros. Trata-se do único
gênero que ainda está evoluindo no meio de gêneros já há muito formados e
parcialmente mortos. Ele é o único nascido e alimentado pela era moderna da
história mundial e, por isso, profundamente aparentado a ela, enquanto que os
grandes gêneros são recebidos por ela como um legado, dentro de uma forma
pronta, e só fazem adaptar – melhor ou pior – às suas novas condições de
existência. Em comparação a eles, o romance apresenta-se como uma entidade de
outra natureza. (1988, p. 398)
Em
O Primo Basílio temos uma história
de adultério, em que o casamento, um dos pilares da sociedade burguesa do século
XIX, é profundamente criticado. Portanto, o mundo retratado perde o caráter de
“perfeição”, o caos da vida moderna passa a ser pintado na literatura e a
forma para demonstrar essa desordem social é o romance.
O
realismo seria a principal diferença entre o romance do século XVIII e a ficção
anterior. A palavra “realismo”, nesse caso, não tem o sentido de oposição
ao idealismo, mas identifica a busca por retratar todo tipo de experiência
humana. E mais, o realismo do romance não está no tipo de vida apresentada,
mas no modo como a apresenta.
O
romance incorpora uma visão circunstancial da vida através de um método
narrativo denominado realismo formal. Segundo Watt, o realismo formal se define
como:
[...]
um conjunto de procedimentos narrativos que se encontram tão comumente no
romance e tão raramente em outros gêneros literários que podem ser
considerados típicos dessa forma. (1990, p.31)
Esses
procedimentos têm como meta permitir uma imitação mais imediata da experiência
individual situada num contexto temporal e espacial do que outras formas literárias
permitiam, uma vez que o romance possui uma obsessividade pelo real.
O
romance é a forma literária que reflete uma orientação individualista e
inovadora. Para que o romance incorporasse a percepção individual da
realidade, não vista nas formas tradicionais, aconteceram mudanças nos agentes
do enredo e no local de suas ações. No
que se refere ao enredo, as formas literárias anteriores refletiam a tendência
geral de suas culturas. Por exemplo, os enredos da epopéia clássica e
renascentista tinham por base História ou a fábula. Os romances do século
XVII, momento de ascensão e consolidação do gênero, são os primeiros que não
extraem seus enredos da mitologia, da História, da lenda ou de outras fontes
literárias do passado. Em O Primo Basílio
percebemos que seu enredo é extraído da realidade contemporânea do autor.
Eça tem como objetivo narrar a experiência individual de suas personagens,
preocupa-se em dar impressão de fidelidade à experiência humana, não se apóia
na tradição coletiva. O enredo da obra desenrola-se em torno de um caso de
adultério, que acontece dentro de uma típica família burguesa lisboeta da
segunda metade do século XIX. O autor descreve a intimidade dessa família
lisboeta.
O
conceito de particularidade realista se manifesta através de algumas técnicas.
Duas são essenciais e diferenciam o romance de outros gêneros e de formas
anteriores de ficção: a individualização das personagens e a detalhada
apresentação de seu ambiente. Houve uma mudança pela preferência do
particular ao universal. O romance passou a ter uma nova perspectiva literária
na qual o enredo envolveria pessoas específicas em circunstancias especificas,
e não, como no passado, tipos humanos genéricos vivendo em um cenário
determinado pela convenção literária adequada. Os romancistas dedicam um
particular interesse ao indivíduo particular.
Eles demonstram uma intenção em apresentar a personagem como um indivíduo
especifico, para isso, nomeiam as personagens do mesmo modo que os indivíduos
particulares recebem nomes na vida real. Os nomes próprios, tanto na vida
social quanto na literatura, expressam a identidade particular de cada indivíduo.
Foi o romance que estabeleceu a função dos nomes próprios na literatura, pois
nas formas literárias anteriores as personagens tinham nomes, mas o nome não
denotava o interesse do autor em criar entidades individualizadas.
Em O Primo Basílio comprovamos
a nomeação das personagens, com o objetivo de sugerir indivíduos
particulares, vivendo no contexto social contemporâneo. Em O
Primo Basílio há pessoas especificas: Luísa, Basílio, Jorge, Juliana
vivendo em um espaço também especifico: a cidade de Lisboa. O romance tem a
liberdade de mostrar pessoas comuns, pois não está atado às regras clássicas.
Para
que haja a individualização das personagens, se faz necessário situá-las em
um contexto com tempo e espaço particularizados, uma vez que essas coordenadas
são correlativas. A tradição literária clássica se utilizava de histórias
atemporais para evidenciar verdades morais imutáveis.
A
partir do Renascimento, o tempo passa a ser encarado não só como uma dimensão
crucial do mundo físico, mas também como uma força que molda a história
individual e coletiva do homem. O romance reflete a orientação típica do
pensamente moderno no que se refere ao tempo. Na obra O
Primo Basílio existe um contexto tempo-espacial definido onde as
personagens se situam. O contexto se define pela Lisboa da segunda metade do século
XIX. Lisboa conceitua-se como o cenário da crítica de Eça de
Queiros, é o espaço da sociedade lisboeta por onde transitam as personagens e
onde elas expõem suas condições sócio-econômicas e históricas.
A
descrição minuciosa que o romance realiza da vida cotidiana depende desse novo
modo de lidar com a dimensão temporal. Segundo Watt (1990, p.23) “...o
romance se interessou pelo desenvolvimento de suas personagens no curso do
tempo.” Em O
Primo Basílio acompanhamos a vida das personagens como um processo temporal
e histórico que está sujeito às
circunstâncias sociais.
Ainda
em relação ao tempo, o enredo do romance se diferencia da maior parte da ficção
anterior por se valer da experiência passada como causa da presente. No romance
se percebe uma relação causal através do tempo que substitui a crença que as
narrativas mais antigas tinham nos disfarces e coincidências. Isso confere ao
romance uma estrutura muito mais coesa. Para o romancista, a identidade de um
individuo se constitui de atos, pensamentos e lembranças. Comprovamos a importância
da experiência passada para o momento presente ao analisar a personagem Juliana
de O Primo Basílio, na qual o flash
back, a recordação, o traumatismo de infância, a obsessão, a menção da
família refletem no modo de agir e pensar do tempo presente. As recordações
passadas de uma vida repleta de miséria asseguram coerência aos atos negativos
de Juliana.
O
romance entende que a narrativa se desenrola em um ambiente real, as ações se
distribuem no espaço, em vista disso há o cuidado com a descrição do espaço
para que este pareça o mais real possível. A partir do século XIX, o espaço
passa a ser visto como meio social. O espaço começa a influenciar a ação. Os
ambientes fechados descritos detalhadamente servem para caracterizar as
personagens, isto é, mostram até que ponto o ambiente em que uma pessoa vive
se parece com ela. Isso pode ser comprovado através da forte relação entre as
miseráveis condições apresentadas pelo quarto em que Juliana vive e seus atos
de maldade para com Luísa.
A
tradição estilística da ficção antiga não se incomodava tanto com o fato
de haver correspondência entre a palavra e as coisas como o romance se
preocupa. A tradição clássica tinha interesse na beleza que o uso da retórica
podia conferir à descrição e à ação. Já no romance, a função da
linguagem parece ser mais referencial.
O romance tem como objetivo fazer com que as palavras revelem o objeto em
toda a sua particularidade concreta, para isso o uso de repetições, parêntesis,
verbosidade, algumas vezes se faz necessário. Observa-se a busca pela exata
correspondência entre o real e a palavra na descrição da sala da casa de Luísa,
há nos detalhes a vontade de se chegar de maneira completa a visão desse cômodo.
A descrição da sala é feita através de adjetivos que tentam dar uma impressão
sinestésica ao leitor, fazendo com que este “realmente” se sinta na sala de
Luísa, até o barulho das moscas é lembrado:
A
sala esteirada, alegrava, com seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel
claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo; fazia um grande calor; as
duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças,
escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã
de missa; uma vaga Quebradeira
amolentava, trazia desejos de sestas, ou de sombras fofas debaixo de arvoredos,
no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone
azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por
cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido,
enchia toda a sala de um rumor dormente. (QUEIRÓS, 1993, p. 15)
A obra realista busca criar impressão
da realidade através do acúmulo de detalhes. Mostra o lado prosaico da vida,
os temas elevados que agradavam aos clássicos perdem espaço.
Constatamos
que o texto queirosiano possui características do gênero romance.
Acima de tudo, no quesito que se refere à representação da realidade,
pois Eça pretende detectar os vícios da sociedade que deseja reformar e isso
exige uma aproximação do real. O
Primo Basílio procura um contato direto com o real, sem a interferência da
subjetividade. Apontar as mazelas sociais da sociedade atual para transformá-la.
Referências
Bibliográficas
BAKHTIN,
M. Epos e romance. In: BAKHTIN, M .
Questões de literatura e de estética. Trad. Aurora Fornoni Bernadini e outros. São Paulo:
FUNDUNESP; HUCITEC, 1988, p. 397-428.
HAMON, P. Um discurso determinado. In: BARTHES, R. et al. Literatura e realidade: O que
é o realismo? Lisboa:
Dom Quixote, 1984.
MACEDO, J. M. M. de. Posfácio a
LUKÁCS. In: LUKÁCS, G. A teoria do
romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed.
34, 2000.
WATT, I. O realismo e a forma
romance. In: WATT, I. A ascenção do
romance: estudos sobre Defoe,
Richardson e Fielding. Trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 11-33.
QUEIRÓS, E. de. O
Primo Basílio. São Paulo: Ática, 1993.