Anais do 1º Colóquio Internacional de Texto e Discurso - CITeD - page 664

de revelação (
hierofania
, segundo os estudos de antopologia das religioões, de Mircea
Eliade).
Nisto que o silêncio aumenta e, pelo lado, eu sinto que tem
alguma coisa em pé pelas biribas da torre velha e eu não tinha
visto nada antes, não podendo também ser da aguardente, pois
que muito mal tomei dois goles. Ele estava segurando uma
biriba coberta de ostras com a mão direita, em pé numa escora,
com as calças arregaçadas, um chapéu velho e um suspensório
por cima da camisa.
- Ai égua! – disse eu. – Veio nadando e está enxuto?
- Eu não vim nadando – disse ele. – Muito peixe?
- Carrapato miúdo.
- Olhe ali – disse ele, mostrando um rebrilho na água mais para
o lado da ilha do Medo. – Peixe. (RIBEIRO, 1981, p. 152-153).
É importante notarmos que o silêncio evocado pela narrativa intenta causar um ponto de
“suspense-epifânico” na cena. Alguns elementos carnavalizantes podem ser evidenciados,
como a vestimenta elaborada numa chave de ridículo para ornar a figura divina; como foi
possível entrevermos, Deus se apresenta ao pescador “com as calças arregaçadas, um chapéu
velho e um suspensório por cima da camisa” (RIBEIRO, 1981, p. 152). Essa imagem muito se
assemelha à composição satírica do homem pobre rural, disseminada no Brasil pelo cinema de
Mazzaropi, nas décadas de 50, 60 e 70. E especificamente o elemento “suspensório por cima
da camisa” sinaliza uma composição pautada pelas propostas de um universo
kitsch
da
cultura.
Na passagem transcrita, podemos notar dois elementos biunívocos e dicotômicos que
caracterizariam simbolicamente uma imagem carnavalesca: a “torre velha” e as “várias
ostras”. A inutilização da torre a insere num outro tempo. É como se sua permanência e os
resquícios de sua materialidade estática aguardassem apenas os dias passarem, contrastando
com as ostras presentes na cena. Segundo o fenomenólogo Gaston Bachelard (1984), as ostras
conotam simbolicamente “o mistério da vida formadora, o mistério da formação lenta e
contínua e fertilidade” (BACHELARD, 1984, p. 267). Daí podermos notar alguns aspectos da
crise carnavalesca, que se constitui imageticamente nessa cena pela oposição nascimento X
morte. Outro contraste se apresenta também entre a dimensão dos peixes centrais da fábula, o
carrapato (o pequeno), e o mero (o grande). Num outro momento do conto, é também o
carrapato quem fornece uma imagem tipicamente carnavalesca. Embora muito pequeno, o
peixe é desenhado, pelo narrador, de maneira deformativa e exorbitante, “com mais boca do
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