Mário Dionísio: entre uma retórica neo-realista e uma lírica autêntica.

 

 

 

Chimena Barros da Gama

Doutoranda/UNESP- Araraquara– FAPESP

 

 

Os poetas do Novo Cancioneiro, publicação do Neo-Realismo português, nos anos 40, são freqüentemente relegados por historiografias literárias, ou citados de forma generalizante, como se a ideologia seguida pelo grupo fosse a única via de suas realizações poéticas. De fato, grande parte dos nomes publicados na coleção dedicou-se a uma poesia contaminada sobremaneira por recursos narrativos, aparentemente sem motivação estética, mas por necessidades ideológicas. Porém, poetas como João J. Cochofel e Carlos de Oliveira mostravam-se, desde o início, distintos de tal contaminação. Outro autor, Mário Dionísio, com seu Poemas, de 1941, encontra-se entre tendência mais ideológica e o desejo de realizar arte lírica.

O autor de A Paleta e o mundo é diversas vezes citado em estudos e pesquisas sobre o grupo, devido a sua numerosa contribuição, com artigos em revistas, para a reflexão acerca do Neo-Realismo, da arte e da poesia. E é do ponto de vista estético que o poeta, também afeito à pintura, revela suas opiniões. Foi um dos pensadores mais lúcidos da vertente, sempre com reservas à simplificação da arte literária ao nível do conteúdo, e promovendo o debate a respeito da necessidade da modificação formal. O poeta, com efeito, foi o representante do Novo Cancioneiro cuja prática poética mais tentou aproximar-se de modernos como Álvaro de Campos. Porém, as composições de Poemas são também depositárias de certa narratividade e outros problemas formais que em breve veremos.

         Já na juventude, precocemente, era um dos diretores do semanário de literatura e crítica Gleba, publicado em Lisboa, em 1937; e, ainda na época, e mesmo em contato com a teoria do autor marxista G. Plékhanov, o poeta apresentou apurado senso crítico acerca da arte e da poesia, conforme as seguintes palavras:

 

Temos assim arte como contribuição de e para a vida. Parece-nos, portanto, acanhado considerar a arte, mesmo a mais subjetiva (o que nos parece bem diferente de impermeável ou inatingível), inútil ou perigosa (DIONÍSIO, apud PITA, 2002, p.236).

 

         Há sempre, nas declarações do autor lisboeta sobre a poesia e a respeito do realismo e das artes em geral, seriedade e honestidade de quem conhecia o assunto, e não se intimidava em defender o mais sensato, mesmo que em oposição ao que muitos de seus colegas de grupo divulgavam, como na afirmação acima, regida por alguns pressupostos do grupo - como o da equiparação da arte à vida, e o humanismo a ela inerente – e, ao mesmo tempo, recusando os vetos do Neo-Realismo à poesia subjetiva (identificadas por eles a dos presencistas, sobretudo).

         Porém, a relação de Mário Dionísio com o ideário neo-realista rendeu-lhe, em termos de prática poética, versos em que se manifestaram tópicas como a “estética do grito”, e a “atitude coral” – definições de Martelo (1998, p.92) – e tantas outras que homogeneizaram a criação da coleção de poesia aqui tratada:

 

Venham todos os meninos nascidos nas palhas

duma mãi camponesa de braços vergados aos molhos de espigas

e dum pai carpinteiro.

[...]

Venham todos os moços de braços inúteis

e tôdas as raparigas de olhos desildidos

e todos os velhos que não tiveram mocidade.

Venham.

Vamos gritar que não!

[...]      (DIONÍSIO, 1941, p.47)

 

O trecho é um exemplo de poesia mais empenhada, constituída pelas minorias (“meninos nascidos nas palhas”; “mãi camponesa”, prostitutas), coletiva, combativa; composta, sobretudo, de enumerações anafóricas, recurso formal excessivamente usado pelo poeta no livro, o que compromete seu êxito lírico, pela extensão que, em geral, dá às “idéias” cantadas. A corruptela, a que o poeta também recorre em outras composições, da palavra “mãe” (“mãi"), não pode ser identificada com o uso da linguagem de uma maneira moderna, coloquial, mas, sim, como a voz dada ao povo. Trata-se, portanto, de uma incidência mais ideológica do que formal; diferente, por exemplo, da obra de António Nobre, este sim trazendo novidade formal e lingüística, através da corruptela, para seus versos, no final do século XIX. Porém, o ritmo é interessante, e o poeta se aproxima do verso livre, embora faça neste e em outros poemas junções de métricas mais curtas, na tentativa de libertar o verso (“liberta-o” ainda artificialmente). E a aliteração no quinto verso (em “l” e “lh”) corrobora a riqueza rítmica. Esse ritmo leva o leitor até o ápice do poema, o “grito” em “Vamos gritar que não!”. A elevação do tom, sugerindo a revolta que o próprio verso significa, remete-nos a vários outros de seus poemas e de seus colegas de grupo. É, pois, aqui, nesse “grito”, que Mário Dionísio mistura sua poesia, tão particular, às de outros autores de poesia do Novo Cancioneiro.

Certas tendências descritivas e narrativas corrompem a lírica desse poeta, como no poema “Desnível” (1941, p.53), em que a imagem metafórica intensifica o desejo de uniformidade (união) que o sujeito lírico sente em relação aos trabalhadores e excluídos, na projeção do “músculo imenso”. Até mesmo o tom maravilhoso do verso em que os “pastores” saltam da obra de arte (da arte para a vida), em um conto do gênero, seria interessante. Mas a síntese que poderia estar formada na imagem do “músculo” estende-se, analiticamente, nas ações narradas: as dos pastores, da bicha e do servo, comprometendo o discurso poético.

         Em várias criações, o poeta parece explicar a metáfora elaborada. Carlos Reis chamou atenção para esta problemática nas composições do autor, aludindo à “[...] espécie de necessidade de explicitação semântica” (REIS, 1983 p.418), que, segundo o crítico, se dá por meio de algumas conclusões nos poemas, e que também identificamos com a descrição de ações, e com as muitas enumerações. A repetição, procedimento poético importante, torna-se, em grande parte das criações de Dionísio em Poemas, não um meio de reiterar o sentido, de modo eficiente, mas um instrumento de esclarecimento. Reis também observou que a metonímia é a pedra de toque da obra, preocupando-se com o fato de que o procedimento pode comprometer a lírica (1983, p.421), o que de fato ocorre, já que a elaboração metonímica pressupõe “detalhes” de um todo, espécies de “pistas”, visão analítica, enquanto, como concluiu o autor de O Discurso ideológico do Neo-Realismo português, a lírica apresenta “tendência para concentração, para a síntese e para a fixação predominantemente intuitiva e patética” (1983, p.418).

         O poema “Segundo Nascimento”, uma história que alegoriza a mudança de postura do homem (o sujeito lírico, do conformismo à revolta), exemplifica bem essas tendências do autor. O eu poético primeiro conta sua “libertação”: “Depois que se romperam os sapatos,/ e deixei a gravata pior que uma rodilha no caixote do lixo,/ é que vi bem o céu” (DIONÍSIO, 1941, p.26). Adiante, uma estrofe é, na verdade, um desabafo, um discurso ideológico e afeito à prosa narrativa: “Não há mais eu e eles porque passou a haver unicamente nós./ Os doutores, as madame e as meninas em série nunca mais me viram/ porque passam por mim sem me reconhecerem [...]” (DIONÍSIO, 1941, p.26, itálico do autor). Trata-se de um discurso até mesmo esteriotipado, afronta ao burguês (“doutores”, “madame”, “meninas”), afirmação de uma personalidade consciente e não alienada: “Tenho a alma repleta de alegria/ e os braços cheios de força/ e o coração a transbordar de amor” (1941, p.26) – e, no entanto, o jovem Dionísio ainda tratava da “alma”, embora essa fosse inexistente para a filosofia materialista que seguia.

Mas, para Carlos Reis, nem sempre a ideologia neo-realista consegue sobressair-se no discurso poético de Dionísio, devido ao que ele chama de “representação simbólica” do autor. Na composição “Arte poética”, por exemplo, o estudioso vê comprometimento do sentido ideológico pretendido por neo-realistas:

 

Ora, o que desejamos vincar aqui são duas conseqüências daqui decorrentes: em primeiro lugar, a representação simbólica reveste-se, como é sabido, de riscos interpretativos que, podendo atingir, em casos extremos, o hermetismo, dificultam, no mínimo, a captação da mensagem proposta (1983, p.110, negritos nossos).

 

         Seria do ponto de vista do leitor comum, a quem a poesia neo-realista pretendeu dirigir-se, que Reis fez tais considerações? A ele, a marca intertextual do poema (a Ofélia shakespereana), e talvez, por exemplo, a leitura da metáfora das “artérias cheias de gente” (imagem que identificamos com a cidade a “fluir transeuntes”, como a artéria em que flui o sangue); enfim, certos procedimentos poéticos podem prejudicar no leitor mediano o entendimento de uma mensagem que, no entanto, não consideramos tão efetiva em todo o poema, mas, sobretudo, no último verso: a da “luta”. Assim, não pensamos estar completamente comprometida a mensagem final: a poesia também está no “combate”. Ora, que ela não está só aí é o que o próprio poema diz. E não enxergamos aqui qualquer tipo de hermetismo; embora o crítico lusitano afirme que ele pode se dar em “casos extremos”, sua leitura de Dionísio levou-o a tal conclusão a partir das criações, as quais não nos parecem, em sua maioria, esconder certa mensagem político-social devido às “representações simbólicas”. E como não compreender a mensagem clara no citado poema “Segundo Nascimento”, cujas referências contextuais são evidentes?

         São, com efeito, poucas as criações em que as características próprias à lírica podem ter como conseqüência a diversidade de interpretação aludida por Reis. Veja-se “Complicação”, considerada aqui excelente exemplar de uma lírica objetiva. A voz ecoa quase sem resquícios de um “eu” – em que há apenas um pronome em primeira pessoa do plural, e aparece somente um verbo com a mesma flexão – mas, ao mesmo tempo, se encontra um sujeito lírico e sua cosmovisão, através de imagens e recursos formais:

 

As ondas indo, as ondas vindo – as ondas indo e vindo sem parar

                                                                             um momento.

As horas atrás das horas, por mais iguais, sempre outras.

E ter de subir a encosta para poder descer.

E ter de vencer o vento.

E ter de lutar.

Um obstáculo para cada novo passo depois de cada passo.

E as complicações, os atritos, para as coisas mais simples,

até para a pronúncia de uma simples vogal.

E o fim sempre longe, mais longe, eternamente mais longe.

 

Ah mas antes isso.

 

Ainda bem que o mar não cessa de ir e vir constantemente.

Ainda bem que tudo é infinitamente difícil.

Ainda bem que temos de escalar montanhas e que elas vão sendo

                                                                     cada vez mais altas.

Ainda bem que o vento nos oferece resistência

e o fim é infinito.

 

Ainda bem.

Antes isso.

50.000 vezes isso à igualdade eterna, sêca, estéril, fútil da planície.

(DIONÍSIO, 1941, p.56)

        

         Quem poderá assimilar qualquer “ideologia” neo-realista a partir do poema, senão por uma leitura viciada? É uma exaltação ao movimento, às superações das dificuldades, ao ânimo. Exaltação sem exclamativas, sem gritos ou apelos imperativos. Assim, logra sem precisar recorrer a mecanismos de uma retórica do convencimento. Apesar da presença quase imperceptível do “nós”, os infinitivos, apresentados na primeira, dão ao poema uma espécie de universalidade, em que todos podemos nos identificar com os movimentos de “subir a encosta”, “vencer o vento”, “ter de lutar”.

         O ritmo da criação é intensificado pelas repetições no próprio interior e no início dos versos. A reiteração, com efeito, causa um acúmulo de “complicações” espelhado no acúmulo sonoro de aliterações, assonâncias e, também, palavras repetidas. Um exemplo: “As horas atrás das horas, por mais iguais, sempre outras.”

            É o segundo verso, que já se inicia formando uma anáfora com o anterior (“as”), composto por dez palavras, e três delas apresentam as vogais “a” e “o” (na mesma palavra); o “a” espalha-se por mais cinco palavras (então, apenas duas palavras do verso, “por” e “sempre” não a possuem); e o “s” compõe nove vocábulos, reinando no verso. O acúmulo de som vem acompanhado do semântico: a palavra “horas” repete-se; “iguais” e “sempre” reforçam-na. E, por fim, o paradoxo entre a igualdade e a diferença nas horas, de maneira que, sendo “sempre outras” são “sempre”, e, assim, não mudam.

         A ambigüidade poética do verso “e o fim é infinito” não nos deixa claro se o poeta trata do final ou da finalidade. Serão as mesmas coisas? De qualquer forma, enquanto “final”, compõe um paradoxo, pois é “infinito”, e vemos aqui uma idéia nada materialista. Enquanto “finalidade”, é prenhe de possibilidades, inesgotável, infinita. Interpretações podem ocorrer muitas, apenas com esse verso.

         Por fim, chamamos atenção para o último verso da composição e as palavras paroxítonas que o compõem, dando-lhe um ritmo harmonioso, plano como a planície: “[...] igualdade eterna, ca, esril, til da placie”. Verso que, inclusive, possui duas rimas toantes internas, em “isso” e “planície” e “eterna” e “estéril”.

         Para além da breve análise aqui levantada, podemos ainda ler o poema como uma espécie de metapoema, por levantar problemas inerentes ao próprio fazer, à formatividade em si. Os versos “E as complicações, os atritos, para as coisas mais simples,/ até para a pronúncia duma simples vogal” não serão uma reflexão sobre a língua e o som? E o seguinte: “E o fim sempre longe, mais longe, eternamente mais longe” (completado por aquele do “fim/infinito”) não questionará sobre o próprio fim (final e finalidade) do poema? É algo a se pensar.

         Quando abandona os gritos, as variantes do “nós”, os personagens miseráveis e oprimidos, Mário Dionísio logra como poeta lírico, singulariza-se como neo-realista e, sobretudo, como poeta. Infelizmente, em Poemas, esses momentos alternam-se. Cumpre ressaltar: isso nem sempre se deve a qualquer inclinação social, mas à juventude do autor. Por esse prisma, são perdoáveis certos lugares comuns de sua poesia. Enfim, não é a poesia social que sufoca o lirismo: é a ansiedade por torná-la assim. O poeta moderno soube, como nenhum outro antes dele, que qualquer matéria é cantável, desde que a linguagem esteja no centro do canto.

 

Referências Bibliográficas:

DIONÍSIO, M. Poemas. Lisboa: Novo Cancioneiro, 1941.

MARTELO, R. M. Carlos de Oliveira e a referência em poesia. Porto: Campo das Letras, 1998.

PITA, A. P. Conflito e unidade no Neo-Realismo português. Arqueologia de uma problemática. Porto: Campo das Letras, 2002.

REIS, C. O Discurso ideológico no Neo-Realismo português. Coimbra: Livraria Almedina, 1983.