Romances de Luiz Antonio de Assis Brasil revelam os planos esquecidos da história
Maria Helena de Moura Arias
Doutoranda em Letras/UNESP-Assis
Orientador: Antonio Roberto Esteves
Ao
tentar estabelecer diferenças entre a História e a Ficção, pode-se chegar a
lugar nenhum ou a todos os lugares ao mesmo tempo. A todos os lugares possíveis
e imagináveis e até aos mais remotos, impossíveis
e inimagináveis. Espaço movediço, é a condição geográfica desta
literatura.
Em
vista disso, é interessante atentar ao que declara Geysa Silva: “Assim,
tratando a História como Narrativa, o escritor contemporâneo realiza a
desconstrução dos fatos e dramatiza as circunstâncias, para que se possa
usufruir a instantânea experiência da vida” (SILVA, 2000, p. 181).
Servindo-se de parâmetros oficiais e, por uma questão de cientificidade
reconhecida, a História ganha terreno no campo da credibilidade e aceitação,
enquanto que o Romance deflagra o
espanto e a dúvida.
Desta
forma, ao passar o trem da história, cabe ao Romance Histórico interferir em
seu trajeto, criando novas perspectivas. Novos caminhos pela terra, ar ou água.
Quem sabe pelo fogo. Admitindo que a verdade não exista sob este ponto de
vista, deduz-se que apenas a
mentira criada e sonhada passa pelo fogo. A mentira argumentada como verdade,
com certeza não teria chance e se queimaria.
Essencialmente,
o novo romance histórico tem por função, fazer uma releitura crítica da história
oficial, dessacralizando-a de forma a torná-la menos confiável e mais flexível.
Criando com isso, alicerces inexplorados e atemporais.
Por
esta sinuosa vereda, caminha quase
que a totalidade da obra do escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, que
evoca para si a autoria de 17 livros[i]
em 30 anos de trabalho ininterrupto.
Tanta
dedicação ao exercício da escrita, será lembrada neste artigo que se propõe,
de forma sintética, fazer uma ponte entre a obra primeira e A Margem Imóvel do Rio.
A
semente lançada em Um quarto de légua em quadro (1976)
Primeiro
romance de Luiz Antonio de Assis Brasil, escrito inicialmente com a intenção
de, segundo o próprio autor, resgatar a história de seus ancestrais açorianos.
Tudo começou com uma pesquisa de caráter meramente histórico já que Assis
Brasil, naquele período se recuperava de uma grave doença e estava
deixando a profissão de músico da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre:
O
livro reconstitui a saga de famílias
açorianas que deixaram seu país de origem levados pela promessa de
uma vida promissora em uma terra distante. Atendendo a um edital do rei
de Portugal Dom João V de 31 de agosto de 1746, estas foram enviadas a
uma região brasileira praticamente desabitada, no caso Santa Catarina e
Rio Grande do Sul e que necessitava urgentemente de núcleos populacionais para
garantir a soberania do país. Dentre as diversas promessas de el rei,
destaca-se a seguinte: "se dará a cada casal um quarto de légua em
quadra"[ii].
Ao
que parece, este foi o mote principal para iniciar o romance. Entretanto, o que
diferencia este livro de um relato histórico como poderia supor seu autor, é a
proposta inovadora, pois a sugestão para o título, de acordo com o narrador
faz parte do diário do médico Gaspar de Fróis, protagonista do livro: "
Para titulo da obra, posto que nam se vio ainda obra sem titulo uzamos as
ultimas palavras do Terceiro Caderno: Um Quarto de Legoa em Quadro" (ASSIS
BRASIL, 1997, p.7). Evidencia-se a grafia supostamente arcaica em um texto de
conotação irônica, fator este que determinaria o estilo do escritor para seus
futuros romances.
Verifica-se
na década de 70, período em que o livro foi lançado, que os Romances, em sua
maioria, trabalhavam com a temática urbana. Disputando entre si aspectos
estruturais diversos, muitas vezes influenciados por escritores
hispano-americanos como Alejo Carpentier, Mario Vargas Lhosa
e Gabriel Garcia Márquez, por exemplo. No entanto, Um
quarto de légua em quadro, além de surgir como Romance Histórico, já
começa a desestruturar alguns conceitos referentes ao que se conhecia até então
sobre este gênero. Isto é, apesar de que já não era uma novidade, sua
ousadia foi a de principalmente, contar
a história pela perspectiva deste suposto diário. A inserção de trechos
deste documento faz com que a narrativa pareça
convincente, deixando o leitor com uma dúvida que é: Será que
existiu o tal documento? Ao mesmo tempo em que isto não importa, visto
que é ficção. Ou poderá acreditar que esta história foi intencionalmente
inventada para mostrar questões
importantes que até então não haviam aparecido na história oficial, como por
exemplo, as dificuldades das famílias envolvidas naquele projeto megalomaníaco.
Mais especificamente, expor os conflitos vividos por um destes colonos, no caso,
o médico Gaspar de Fróis o qual sente compaixão pelo sofrimento de
seus compatriotas, mas acha-se impotente para tomar alguma atitude e que, por
isso, acredita-se culpado.
O
olhar do narrador media a ansiedade do protagonista em sua relação com o
contexto. Não lhe atribui um caráter forte e valente, como se verificava em
romances históricos tradicionais, pelo contrário, o personagem é um poço de
dúvidas e contradições. Esforça-se, porém, para demonstrar alguma coragem e
destreza, mas sem resultados.
A
revelação que brota em A margem imóvel do rio (2003)
Este
Romance, escrito de junho de 2001 a junho de 2003, é um daqueles livros que
parecem deixar o leitor com uma estranha sensação de estar fazendo parte de um
jogo, não exatamente como jogador, mas como mais uma
de suas peças. Trata-se de uma intrincada estrutura de labirinto que faz
com que o personagem nos leve aonde quer. E
é surpreendente, como nos deixamos prender sob pretexto de acompanhar o
Cronista oficial da Corte de Dom Pedro II em sua visita à Província do Rio
Grande do Sul em pleno Século XIX.
Trata-se
de uma paródia à curiosidade histórica. O historiador é deslocado de seu
espaço para encontrar um tal Francisco da Silva, suposto estancieiro dos
confins dos pampas. Ocorre que este gaúcho cobra uma promessa feita pelo
Imperador há vinte anos atrás, de agraciá-lo com o título de barão em
reconhecimento por sua hospitalidade. E lá se vai um personagem desnomeado em
busca de um nome que não é o seu. Ou poderia ser? No entanto, tudo deveria ser
feito de forma que os Republicanos não tomassem conhecimento daquela negligência.
O
romance, tem caráter histórico e revela como objetos de seu cenário e certas
peças são necessárias ao compromisso e identidade da personagem com seu
mundo: "[...] as verticais estantes com livros de História e certos
romances de Walter Scott e Sterne, o aparador com tampo de mármore
ele transformara em depósito de mapas, e uma graciosa estátua de Clio
em gesso [...]" (ASSIS BRASIL, 2005, p. 17).
Após
sua partida, o historiador recria uma outra existência. Sai em busca de si
mesmo e vê-se muito mais perto da história, mas não a história a que está
acostumado ou a história por ele tantas vezes escrita, ou seja, ele encontra a
história omitida ou esquecida naquelas distantes terras do sul do país.
Quando
retorna já não é mais o mesmo. Instituída a República, o país não tem
mais um imperador e ele não tem mais nenhum compromisso. E a história? O que
importam suas anotações, se todas são passíveis de serem apagadas e
reescritas.
Neste
livro, o argumento da discussão entre história e literatura ou literatura histórica
é subvertido passando o protagonista a personificar este caráter polêmico e,
ao mesmo tempo transitório, destes dois pontos de vista. Deixando subentendido
que o historiador, assim como o romancista, podem interferir neste processo de
forma velada ou explícita e seguindo aqueles palpites indispensáveis centrados
em suas perspectivas e ideologias.
Esboço
de uma interminável colheita
Obviamente que as duas obras apresentadas, diferem entre si e muito. Nelas pode-se verificar a determinação do escritor em lapidar seu texto, não no sentido parnasiano, mas de maneira a implementar novas técnicas. A leitura da obra de Assis Brasil nos remete a uma oficina literária, talvez porque o escritor atualmente coordene uma destas Oficinas na PUC de Porto Alegre, ou talvez porque deseje ampliar sua compreensão em relação ao diamante escolhido. Ao leitor cabe a tarefa de polir a peça.
De
acordo com próprio o autor, seu primeiro livro tem muitas falhas. Por isso, o
que fez a seguir foi intensificar a pesquisa
em novas técnicas. Mesmo assim, verifica-se que a ponte que liga Um
quarto de légua em quadro a A
margem imóvel do rio, foi construída sobre um alicerce preparado pela história,
mas a história transgressora. Cada pilar desta ponte trabalha com técnicas
exclusivas que vão se aprimorando a
cada livro. A transgressão está presente não apenas na temática, mas
principalmente na inserção de personagens carregados de conflitos, os quais
refletem e testemunham seu contexto sob olhares duvidosos. Porque são
desconfiados até mesmo de seu papel e divergem inclusive do narrador, opondo-se
a este como elementos vivos e autônomos. Estes personagens, em crescente
conluio, são responsáveis pela decisão do escritor em apresentar uma
literatura límpida e agressivamente irônica.
É
relevante afirmar que entre um livro e outro
não existe um vácuo obscuro, mas
sim uma incessante busca pela palavra perfeita. Embora, esta não exista
efetivamente ou seja inalcançável, as
narrativas posteriores constróem trincheiras
confiscadoras de excessos. De um ao outro, o leitor poderá entrever o
caminho percorrido, se cheio de árvores sombrias, ou sol escaldante do verão
dos pampas.
Cabe
ainda, neste breve artigo, registrar o mais recente livro de Assis Brasil,
publicado em 2006, Música Perdida, o
qual apresenta de forma melodiosa, a vida do maestro mineiro, radicado em Porto
Alegre no século XIX, José Joaquim de Mendanha.
O
zelo por sua criação e o empenho em transmitir às novas gerações o ofício
doloroso e messiânico de escritor, garantem
a Luiz Antonio de Assis Brasil um lugar especial na Literatura Brasileira, para
não dizer único, o de mais representativo romancista da atualidade.
Referências
Bibliográficas
ASSIS
BRASIL, L. A. Um Quarto de Légua em
Quadro. Porto Alegre: Movimento, 1997.
ASSIS
BRASIL, L. A. A Margem Imóvel do Rio.
Porto Alegre: L&PM, 2003.
SILVA, G. Nova história, novo Romance. In: BOËCHAT, M. C. B. et alii. Romance Histórico. Recorrências e Transformações. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2000.
[i] Obras de Assis Brasil, segundo Informações obtidas na página www.laab.com.br.
[ii] Informações obtidas na página
assisbrasil.org/acores.html