Um estudo sobre as formas de digressão em O nome da rosa de Umberto Eco

 

Paulo Fernando Zaganin Rosa

Mestrando/Unesp-Assis

Orientadora: Ana Maria Carlos

 

Crítico, ensaísta, escritor e semiólogo de fama internacional, Umberto Eco nasceu em 05 de janeiro de 1932, em Alexandria, na Itália. Já nas décadas de 60 e 70, sua atividade como intelectual foi bastante intensa: foi professor nas Universidades de Milão, Florença e Bolonha e fez parte do Gruppo ’63, revelando-se um teórico arguto e brilhante. Promoveu diversas discussões sobre a história da estética, sobre as poéticas das vanguardas, sobre a comunicação de massa, sobre a cultura de consumo, etc. Para comprovar seu interesse pela arte de vanguarda, surge em 1962, Obra aberta, livro que acabou por deflagrar uma grande polêmica sobre as relações entre “alta” e “baixa” cultura, sobre a incorporação, pela literatura, das novas linguagens do jornalismo, da publicidade e da televisão, então em curso, e que eram menosprezadas pela literatura tradicional.

Em 1980, Umberto Eco faz a sua primeira experiência como romancista com a publicação de O nome da rosa (Prêmio Strega 1981), conseguindo um enorme sucesso de vendas. Conforme o próprio Umberto Eco afirmara, O nome da rosa foi escrito para pôr em prática as teorias expressas em seu texto Lector in fabula (1979): o trabalho de detetive exercido pela personagem Guilherme de Baskerville no romance equivaleria ao trabalho do leitor na interpretação da obra. Desta forma, estando o texto estruturado através de diversas camadas sobrepostas e interpostas, caberia ao leitor-modelo seguir as “pistas” deixadas pelo autor para a decodificação da obra.

A repercussão do romance foi imediata, o livro fez a volta ao mundo e foi traduzido em mais de 30 línguas, dando origem, em 1986, a uma transposição cinematográfica, sob a direção de Jean-Jacques Annaud. A obra é um metaromance, em que estão encaixadas várias estruturas ou gêneros de romance, como por exemplo o histórico, o policial, o filosófico, o ideológico, o alegórico, o gótico, o de formação, etc. Trata-se de uma obra intertextual, constituída de palavras já ditas, nomes já ouvidos e histórias já lidas, de frases feitas e de fatos já acontecidos, misturados e reorganizados em um novo texto. O romance foi escrito para dois tipos de leitores: para o leitor experiente, que em cada linha encontra uma citação para decifrar, e para o leitor comum, que se interessa apenas pela trama, pelos “grandes efeitos”: sangue, morte, violência, etc.

A obra está dividida em sete dias e cada um dos dias em períodos correspondentes às horas litúrgicas. Na introdução à obra deparamo-nos com a afirmação de Umberto Eco que diz ter encontrado um manuscrito com as memórias de um monge beneditino, de nome Adso de Melk, que deixa aos pósteros, à beira da morte, uma misteriosa história acontecida nos tempos de sua juventude. A história relata que, em 1327, no curso de uma viagem na Itália setentrional, o noviço Adso, junto ao seu mestre, o frade franciscano inglês Guilherme de Baskerville, chega a uma rica abadia beneditina situada numa localidade sobre a Costa Lígure, que contém a maior biblioteca do mundo cristão, cuja riqueza ajuda a explicar o título do romance: “o nome da rosa” era uma expressão usada na Idade Média para denotar o infinito poder das palavras. Frei Guilherme, nas suas vestes de embaixador especial do Imperador, tem uma complicada missão para cumprir: organizar um encontro, na abadia, entre uma delegação do Papa e os Minoritas, liderados pelo frade teólogo Michele de Cesena, suspeitos de heresia, porque acreditavam que a Igreja devia seguir o exemplo de Cristo e de seus apóstolos, que não tinham bens de espécie alguma, e que os cristãos (a começar pela Igreja) deviam seguir os Seus ensinamentos. Ali, em meio a intensos debates religiosos, Guilherme e seu ajudante Adso envolvem-se na investigação das insólitas mortes de sete monges, em sete dias e sete noites, acontecidas sob o modelo apocalíptico do apóstolo João.

Tomado pela febre da pesquisa, o ex-inquisidor começa a trabalhar, recolhe indícios, decifra escritos misteriosos, descobre a engenhosa biblioteca em forma de labirinto, penetra cada vez mais fundo nos mistérios da abadia. Logo, o desmascaramento do assassino interessa-lhe muito mais do que a luta entre o Imperador e o Papa. Todavia, quando ele encontra por fim o culpado e desvenda o caso, após momentos de verdadeiro suspense, já é muito tarde. Descobre-se que o próprio “assassino” é apenas uma vítima, que a sua trama escapou-lhe das mãos, que o verdadeiro culpado é, em última análise, um livro imaginário, chamado novamente à vida: o Segundo Livro da Poética de Aristóteles, obra dedicada ao cômico, protegida no meio da biblioteca pelo ex-bibliotecário, o espanhol cego Jorge de Burgos.

O nome da rosa começou a ser escrito em março de 1978 e seu lançamento aconteceu em outubro de 1980. Umberto Eco apresenta em seu romance uma pluralidade de estilos, servindo-se de uma infinidade de recursos para a construção da trama, tais como a intertextualidade, o discurso pseudoautobiográfico, a colagem, a paródia. Para a construção do romance, valeu-se também da técnica do encaixe, procedimento em que a narrativa propriamente dita é interrompida para que se dê a inclusão de outro tipo de discurso. Um tipo de encaixe bastante recorrente em O nome da rosa é a digressão.

Para a nossa análise da técnica do encaixe por digressão em O nome da rosa, nos baseamos, sobretudo, na obra de Giovanni Battista Tomassini, Il racconto nel racconto, que tem o propósito de examinar as principais teorias sobre os procedimentos de inserção narrativa, revisando as concepções sobre o tema elaboradas por Tzvetan Todorov e Gérard Genette. A designação “narrativa na narrativa” (racconto nel racconto) não corresponde a um único procedimento, mas a um grande número de técnicas que partilham algumas características elementares. De acordo com Tomassini (1990) “com a denominação ‘narrativa na narrativa’ pretende-se referir àquelas formas narrativas particulares, nas quais uma história vem colocada dentro de uma outra história” (p. 11)1. Tomassini retoma o ensaio de Tzvetan Todorov dedicado às categorias da narrativa literária, em que o autor distinguiu três possíveis modelos de ligação das histórias dentro de formas narrativas complexas: encadeamento, encaixe e alternância. Segundo o autor, “os efeitos principais dessa técnica são ao menos dois: primeiro, ela garante a variedade dentro da obra; em segundo lugar, a interrupção das seqüências em momentos críticos, pode transformar-se num instrumento que leva ao suspense” (p.12).

Para Tomassini, entre os três tipos distinguidos por Todorov, o único inerente ao conceito de narrativa na narrativa será o encaixe, que consiste na “‘inclusão de uma história dentro de uma outra’, sob o modelo que nós encontramos nas Mil e uma noites, em que todas as histórias estão encaixadas na história de Xerazade”(p. 17).

A nossa análise do procedimento de digressão em O nome da rosa procurou seguir a classificação estabelecida por Gérard Genette (1979). De acordo com o ensaísta francês, a digressão pode ser classificada, a partir da relação que estabelece com a narrativa em que está encaixada, em seis tipos, a saber: explicativa - esclarece as origens e motivos daquilo que está sendo narrado, informa o leitor sobre as ações ou palavras usadas para compor a narração; prenunciativa – anuncia antecipadamente fatos posteriores à narração presente; temática pura – possui uma relação de contraste ou analogia com o tema principal da obra ou o tema narrado no momento em que é inserida; persuasiva – procura convencer a respeito de determinado assunto, valendo-se principalmente da argumentação; distrativa, intimamente ligada à função obstrutiva – ambas relacionam-se ao próprio ato de narrar, buscam retardar ou impedir as ações das personagens por meio da narração.

O uso das digressões é mais freqüente nos quatro primeiros capítulos (do primeiro ao quarto dia) do romance, gozando principalmente de uma função explicativa, informando o leitor sobre acontecimentos passados, de modo particular, anuncia uma nova personagem apenas introduzida na história, buscando esclarecer os seus antecedentes. De maneira geral, este primeiro tipo de digressão tenta elucidar os acontecimentos que levaram à situação presente. Temos um exemplo no primeiro capítulo. Logo após a chegada de frei Guilherme de Baskerville e seu ajudante Adso de Melk à abadia beneditina, o Abade Abonne toma a palavra para narrar um fato que acontecera dias antes a um jovem monge chamado Adelmo de Otranto, que deixara os monges muito perturbados. Ainda no mesmo capítulo, por ocasião do reencontro entre Guilherme de Baskerville e seu amigo Ubertino de Casale que não se viam há muitos anos, o narrador constrói um longo discurso sobre os acontecimentos religiosos e políticos da Itália naqueles anos, narrando toda a trajetória da “personagem lendária” Ubertino de Casale e explicando os motivos que o levaram a se esconder naquela abadia.

As digressões com função argumentativa procuram geralmente apresentar reflexões a respeito de assuntos religiosos. No segundo capítulo, por meio dos pensamentos de Adso, o narrador faz uma breve argumentação sobre a “verdadeira penitência”, remetendo ao encontro que Adso e frei Guilherme tiveram com uma procissão de flagelantes durante a viagem até a abadia.

As digressões com função descritiva são usadas tanto para traçar o perfil de uma personagem como para caracterizar um ambiente. No segundo capítulo, o narrador interrompe um diálogo entre Guilherme de Baskerville e Jorge de Burgos, para pormenorizar as habilidades deste último, que embora cego, era o conselheiro dos monges mais jovens e o guardião da biblioteca.

As digressões com função temática estão freqüentemente relacionadas à narrativa principal. Apresentam uma certa afinidade com aquilo que está sendo narrado no momento em que são inseridas. No segundo capítulo, o narrador desenvolve um panorama sobre as razões que levaram frei Guilherme a servir de mediador entre a ordem franciscana e a sede pontifícia no encontro e debate sobre a pobreza que se dará em breve na abadia, destacando ainda a delicada missão que ele recebeu do Abade Abonne para desvendar os estranhos mistérios que estão acontecendo naquele lugar.

O romance recorre também à digressões com função ornamental, que servem simplesmente para abrilhantar a narração. No quarto capítulo, por exemplo, Adso relembra as paisagens encontradas durante a viagem até a abadia.

As digressões com função exemplificativa são pouco recorrentes na obra e geralmente são muito breves. Servem comumente para elucidar os hábitos de uma personagem ou relatar uma experiência do passado que servirá de exemplo para um fato presente. No segundo capítulo, o narrador toma as ações de Guilherme para exemplificar o costume dos “homens de sua terra”, isto é, os ingleses.

Outra digressão pouco usada na obra é aquela com função distrativa/obstrutiva que auxilia, em geral, a retardar um acontecimento. No segundo capítulo, temos um trecho em que o narrador toma a fala de Bêncio de Upsala, para contar o que este presenciou na noite anterior à morte de Adelmo de Otranto e das ligações homossexuais deste último com Berengário de Arundel. O relato de Bêncio tem o intuito de distrair Adso e frei Guilherme para afastá-los do scriptorium. Para tanto, o primeiro dispõe-se a dar em troca informações que interessam a estes últimos.

Temos finalmente, as digressões com caráter prenunciativo. Estas últimas estão intimamente ligadas ao ambiente em que se desenvolve a trama do romance, pois dizem respeito à profecia, ao anúncio de coisa futura, tema muito comum entre os moradores de uma abadia, habituados à prática da leitura da sagrada escritura. No sexto capítulo, pouco antes do desfecho da trama, o narrador relata o sonho (visão) de Adso que fora baseado na paródia das Escrituras de São Cypriano. O sonho de Adso confirmará uma das hipóteses de frei Guilherme a respeito dos fatos misteriosos que estão ocorrendo há seis dias na abadia. Esta digressão é um resumo confuso dos eventos que aconteceram naqueles dias na abadia e o prenúncio de um tormento ainda maior, que esclarecerá os seus mistérios e resultará na deflagração total da abadia.

Com a publicação de O nome da rosa, Umberto Eco teve a intenção de recapitular-se, fez um repasse geral dos tantos livros que leu, das experiências amadurecidas, dos conhecimentos acumulados, das descobertas efetuadas, quis sobretudo fornecer uma demonstração da eficiência das tantas teorias sobre o romance, entendido como arte da combinação, que os formalistas russos, os estruturalistas, os neovanguardistas, os barthesianos e outros elaboraram nas últimas décadas. Disso surgiu uma mistura prestigiosa em que erudição e cultura, senso de atualidade e sabedoria do passado, ciência e doutrina, teoria e praxe misturaram-se sem deixar resíduos, e deram vida a uma construção que, pela modernidade das técnicas usadas, pela novidade dos materiais empregados e pelo sucesso dos resultados obtidos, representou o ponto mais alto, o produto mais bem acabado e brilhante da cultura literária pós-moderna na Itália.

Umberto Eco recorreu em toda a obra à utilização da técnica do encaixe como forma de organização do conhecimento. A reconhecida emblematicidade do romance, escrito quase por jogo, confirma a pluralidade de estilos e a habilidade que o autor tem de praticá-los sobre chaves e registros diferentes. Umberto Eco discute em sua obra grandes temas da filosofia européia, e observa que o universo é provido por signos que deveriam nos orientar, mas que, na verdade, nos desorientam; que a aspiração à verdade plena não passa de uma ilusão e, principalmente, que o conhecimento sem alegria torna-se uma banalidade.

 

Referências Bibliográficas

ECO, U. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

ECO, U. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 2ª Ed. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1971.

ECO, U. O nome da rosa. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983

ECO, U. Postille a “Il nome della rosa”. In: Il nome della rosa. 46ª ed. Milano: Bompiani, 2000.

GENETTE, G. Discurso da narrativa. Lisboa: Veja, 1979.

GIOVANNOLI, R. (cur.) Saggi su “Il nome della rosa”. Milano: Bompiani, 1999.

TODOROV, T. As categorias narrativas. In: Análise estrutural da narrativa: pesquisas semiológicas. Rio de Janeiro: Vozes, 1972.

TOMASSINI, G.B. Il racconto nel racconto: analise teorica dei procedimenti d’inserzione narrativa. Roma: Bulzoni, 1990.

 

 

1 A tradução do texto de Tommassini é de nossa responsabilidade. As páginas citadas referem-se ao texto original. Nas próximas citações serão apresentadas apenas o número das páginas.